O globo, n. 31702, 24/05/2020. Especial Coronavírus, p. 12

 

Escassez

Mariana Barbosa

24/05/2020

 

 

Falta de profissionais de saúde é ameaça de colapso ainda mais agudo

 A escassez de profissionais de saúde e a falta de uma política de recursos humanos viraram alguns dos maiores gargalos no enfrentamento da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, e já é um dos fatores responsáveis pelo colapso do atendimento em algumas regiões do país.

— Todo mundo só fala de respirador e hospital de campanha e depois acha que contrata o profissional na esquina — diz Mario Dal Poz, professor do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Dal Poz é coautor de estudo inédito do IMS, em parceria com o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), sobre o déficit e a vulnerabilidade de profissionais de saúde por estado.

O estudo revela que, se a taxa de infectados pela Covid-19 passar de 10% da população em seis meses a partir da primeira infecção, só o Distrito Federal teria condição de manter atendimento nas UTIs. A taxa de contaminação hoje no Brasil é estimada em 4%. Manaus, uma das cidades que enfrentam situação mais crítica por causa da escalada da doença, tem hoje 10% de infectados, segundo o “censo do contágio”, estudo nacional que está sendo conduzido pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) com apoio do Ministério da Saúde. Longe do número ideal de profissionais da saúde, a capital amazonense precisou importar quase 400 médicos e enfermeiros de outros estados.

VAGAS EM ABERTO

No estado do Rio, hospitais de campanha estão subutilizados por falta de profissionais. O Amapá tenta importar médicos cubanos, mas enfrenta resistência da classe médica. E mesmo com remunerações de até R$ 15 mil, o Espírito Santo não consegue preencher vagas em aberto.

No Rio e em São Paulo, a taxa média mínima para o sistema não colapsar por falta de profissionais de UTI é de 8,7% e 5,2% respectivamente, segundo o estudo do IMS/ IEPS. No Nordeste, taxas de infecção inferiores a 4% já são suficientes para que o sistema entre em colapso. Os pesquisadores mapearam também a quantidade de médicos intensivistas de UTI, cardiologistas e anestesistas em cada estado, nas redes públicas e privadas.

—Mas é um pool teórico. O Rio, por exemplo, tem mais profissionais, mas eles não estão disponíveis. Não foram preparados para Unidade de Tratamento Intensivo, muitos estão se contaminando ou já estão sobrecarregados —diz Dal Poz.

MÚLTIPLOS RISCOS

Para calcular a demanda, o estudo considerou a estimativa de que 5% dos infectados com o coronavírus evoluirão para casos mais graves, precisando de internação média de 14 dias em UTIs. Segundo Dal Poz, um dos maiores especialistas do país em recursos humanos na área de saúde, o problema para o enfrentamento da Covid-19 é a falta de uma política pública e de gestão dos profissionais. Treinar médicos residentes ou recém-formados ou capacitar profissionais de outras especialidades para trabalhar em UTIs, além de políticas de incentivo financeiro — como oferecer seguro-saúde ou de vida —, são algumas das recomendações do estudo. Para Arthur Aguillar, economista do IEPS, a onda epidêmica pode durar até 2022, e a falta de uma política organizada para os profissionais de saúde pode tornar o problema de fato crônico. —Se não usarmos esse momento, ainda que caótico, e não nos organizarmos minimamente para as próximas ondas endêmicas, vamos continuar enfrentando os mesmos problemas—afirma. A falta de equipamentos de proteção e condições de trabalho nos hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) ajudam a explicar as razões de o Brasil registrar alta taxa de infeção de profissionais de saúde.

O país contabiliza ao menos 113 médicos e 143 enfermeiros vítimas fatais da Covid-19. O mesmo estudo do IMS/ IEPS mostra que 66% dos profissionais ativos acima de 60 anos apresentam algum fator de risco, sendo que 63% são portadores de doenças crônicas, 27% são obesos e 28% fumam ou são ex-fumantes. Desses, 38% apresentam duas ou mais condições de risco. Dentre os mais jovens, 37% apresentam algum fator de risco, sendo que 20% deles sofrem de doenças crônicas e são obesos.

O alto nível de estresse nas unidades intensivas e os riscos de contaminação tampouco ajudam a preencher as vagas abertas nos editais públicos. E a situação tende ase agravar.

— Boa parte dos médicos e enfermeiros tem de dois a três vínculos profissionais. Além de atuar como transmissor de um hospital para outro, quando o profissional adoece, ele causa desfalque em duas ou mais instituições — diz Amanda Fehn, que assina o estudo, junto com Letícia Aguillar e Dal Poz.

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No Rio, médicos vivem rotina de incertezas

Rafael Galdo

24/05/2020

 

 

Contratação de novos profissionais é dificultada por atrasos no pagamento, falta de estrutura e risco maior de contágio

 Não bastassem os desgastes emocionais diários, médicos dos hospitais públicos para vítimas do coronavírus no Rio têm ido para a linha de frente com contratos temporários precários, cercados de incertezas quanto a salários e encargos trabalhistas e tendo que encarar riscos como a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs). Fatores que, aliados à enorme demanda durante a pandemia, e numa competição com o setor privado, contribuem para que município, estado e União não consigam completar o quadro necessário de profissionais, de acordo com entidades de classe e especialistas. Na prefeitura do Rio, segundo a Secretaria municipal de Saúde, até a última sexta-feira foram contratados 842 (70%) dos 1.195 médicos previstos para os hospitais de campanha do Rio centro e Ronaldo G azol la, e apoio ao Federal de Bonsucesso e ao Clementino Fraga Filho, no Fundão.

O estado —cujo governador Wilson Witzel prometeu ontem entregar os seis hospitais de campanha que estão com obras atrasadas—informa que a responsabilidade das contratações é da organização social Iabas. Nem um nem outro confirma quantas admissões realizaram. Segundo fontes, foram cer cade 50% dos 560 a 700 médicos esperados. Na rede federal, coma Justiça há semanas tentando ativar mais leitos para a Covid-19, o processo é mais lento. Enquanto

a fila de espera não dá sinais de desaparecer, só no último dia 15, quando o Estado do Rio já registrava 2.438 óbitos pela doença, o Ministério da Saúde publicou edital para contratar 1.137 médicos, com inscrições que terminam hoje.

Na prefeitura, uma das dificuldades, no entanto, é justamente a de que, quando chamados, os candidatos nem sempre se apresentam para efetivar as contratações. — Há uma pressão de mercado, elevando salários. Mas muitos temem não receber —diz Ricardo Dias, diretor do Cremerj.

DESAFIO É GRANDE

Quem aceitou encarar o desafio dos “covidários”, como têm sido chamadas UTIs e enfermarias para pacientes da pandemia, vive rotina caótica e de falta de infraestrutura. Um médico do Hospital de Campanha do Riocentro, sem se identificar, dá conta de falta de oxímetros, estetoscópios e raio-X. No do Maracanã, que é do estado, uma médica decidiu pedir demissão esta semana alegando a falta de medicamentos básicos na terapia intensiva, que ela chamou de “CTI de fachada”. Alexandre Telles,p residente do Sindicato dos Médicos do Rio, diz que o quadro precário da saúde pública aumenta a insegurança para a adesão de profissionais às vagas abertas.

Na capital, diz ele, a RioSaúde tem atrasado o pagamento de gratificações de 20% sobre o salário prometidas para quem está no combate da Covid-19. Há dois meses, o adicional noturno dos profissionais do Ronaldo Gazolla não é pago. E, desde o fim do ano passado, não há recolhimento de INSS de trabalhadores. No Estado do Rio, a desconfiança dos médicos cresceu diante das denúncias de corrupção nas compras emergenciais para a pandemia. As contratações do Iabas têm ocorrido no modelo de pessoa jurídica (PJ). Mas o instituto, diz Telles, tem pendências trabalhistas que levaram o SinMed/RJ a acioná-lo na Justiça.

A prefeitura informa que os médicos contratados temporariamente recebem conforme plantões e carga horária semanal. Segundo a RioSaúde, há opções de 12 a 44 horas, e os vencimentos podem chegar a R$ 21.454. No edital do governo federal, é prevista remuneração mensal de R$ 11 mil para carga horária de 24 horas semanais. Já o Iabas não informou os valores pagos.

O município afirma ter caixa para fazer os pagamentos e que os tem honrado. Também informa que está reforçando a equipe administrativa. Um erro na folha de pagamento é apontado como razão para o atraso nos vencimentos de parte dos funcionários este mês. Diz ainda que o reparo do raio-X do Riocentro está em andamento e nega falta de oxímetros e estetoscópios. O Ministério da Saúde ressalta que, além do edital para contratos temporários, lançou a ação “Brasil Conta Comigo”, para capacitar profissionais, com 500 mil já cadastrados.