O Estado de São Paulo, n.46253, 06/06/2020. Metrópole, p.A20

 

País registra mais de mil mortos em 24 h

Mateus Vargas

06/06/2020

 

 

Números foram apresentados novamente com atraso e Bolsonaro diz que ‘acabou matéria’ de TV; total de infectados passa de 645 mil

O Brasil voltou a registrar ontem mais de mil mortes pela covid-19 pelo quarto dia seguido – foram 1.005 nesta sexta. E pelo terceiro consecutivo os dados voltaram a ser divulgados por volta das 22 horas. Questionado, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que “acabou matéria no Jornal Nacional”, telejornal da TV Globo, sobre a doença.

O total de óbitos pela doença – que também deixou de ser divulgado no boletim enviado para a imprensa – agora é de 35.026. Há um total de 645.771 diagnósticos da doença em todo o território nacional, sendo 30.830 novos casos confirmados em 24 horas. Entre as nações com mais óbitos pela covid-19, o Brasil só está atrás dos Estados Unidos (109.042 óbitos) e Reino Unido (40.344 óbitos), no total de vidas perdidas para a doença.

Bolsonaro não chegou a confirmar que é dele a ordem para que os dados, antes entregues por volta das 19 horas por mais de 70 dais, sejam apresentados apenas às 22 horas. “Não interessa de quem partiu (a ordem). Acho que é justa essa ideia da noite, sair o dado completamente consolidado”, disse o presidente. Em declaração à imprensa em frente ao Palácio da Alvorada, Bolsonaro disse ainda que “ninguém tem de correr para atender a Globo” e cobrou que sejam divulgados “apenas os números de pessoas que morreram naquele dia”.

O número de vítimas do novo coronavírus confirmadas de um dia para o outro, de fato, não significa que todas as mortes ocorreram nesse período. O dia com maior número de mortes (670) pela covid-19 no Brasil foi 12 de maio, segundo dados de quarta-feira. Os dados que vêm sendo divulgados consideram investigações de óbitos que só foram encerradas nas últimas 24 horas, mas podem ter ocorrido semanas antes.

Há, porém, 4.159 mortes em análise, que podem ainda aumentar a conta de vítimas da covid-19. Ou seja, o número de mortes confirmadas em cada dia cresce conforme essas análises são concluídas.

Como o Estadão já revelou, informes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) enviados ao Palácio do Planalto e a ministros alertam para alta subnotificação de infectados e mortos no Brasil. “A participação do Brasil torna-se mais significativa se for considerado que o País tem 10 a 15 vezes menos testes diagnósticos realizados por milhão de habitantes que os demais (países) e, portanto, é provável que os números brasileiros estejam subestimados e sejam de maior proporção do que os apresentados”, diz relatório de 12 de maio.

Suspeito. Bolsonaro também voltou a minimizar, nesta sexta-feira, números da covid-19 no País. Ele sugeriu que outras doenças são a causa real de muitas mortes. “Tem de saber quem perdeu a vida ‘do covid’ ou ‘com covid’. A pessoa tem 10 comorbidades, 94 anos. Tem, pegou vírus. Potencializa. Parece que esse pessoal... Globo, Jornal Nacional, gosta de dizer que o Brasil é recordista em mortes. Falta, inclusive, seriedade. Mortes por milhões de habitantes, nem se faz”, disse o presidente.

O Ministério da Saúde nega atraso proposital. “Essas situações podem acontecer, porque esse processo de checagem é muito variável”, disse anteontem o secretário substituto de Vigilância em Saúde, Eduardo Macário. Mas não houve explicações em relação ao fato de que a divulgação nas gestões Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich ocorria em um horário mais cedo.

- Cético

“Tem de saber quem perdeu a vida ‘do covid’ ou ‘com covid’. A pessoa tem 10 comorbidades, 94 anos. Tem, pegou vírus. Potencializa. (...) Mortes por milhões de habitantes, nem se faz.”

Jair Bolsonaro

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

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Abin fez alerta sobre caos em cemitérios

Mateus Vargas

06/06/2020

 

 

Documentos obtidos pelo ‘Estadão’ mostram que Planalto foi informado da falta de espaço para realizar enterros

A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) alertou o Palácio do Planalto e ministros sobre situações de caos em cemitérios do País e a falta de espaços para sepultamentos, causados pelo aumento de óbitos pela covid19. Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro tem acusado gestores de fazer “terrorismo” ao buscar novos espaços para enterros e xingou o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), por ter aberto covas coletivas.

Em informes sobre a pandemia que somam cerca de 950 páginas, com datas de 27 de abril a 13 de maio, obtidos pelo Estadão com exclusividade, a Abin mostra o desespero de famílias que não encontram parentes mortos em enterros precários em Manaus.

“Famílias relatam desaparecimento temporário dos corpos de familiares que morreram na rede pública de saúde. No cemitério público Nossa Senhora Aparecida, a prefeitura informou que os corpos serão enterrados em valas comuns, empilhados três a três”, apontou a agência em documento de 29 de abril. No mesmo informe, a Abin afirma que cresce em Manaus a opção de cremar corpos “por não haver mais espaço suficiente nos cemitérios públicos” para vítimas da doença.

Ainda segundo a agência, caixões na capital do Amazonas foram abertos por pessoas que buscavam parentes. “A ação ocorre após trocas e desaparecimento de cadáveres.”

Apesar de alertas de autoridades de saúde e da Abin, Bolsonaro reclama da mobilização de gestores de Estados e municípios para dar conta de enterrar mortos pela covid. No início de abril, chamou de “terrorismo” a abertura de covas no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo.

Em reunião ministerial de 22 de abril, Bolsonaro xingou o prefeito de Manaus por abrir covas coletivas. “Aproveitaram o vírus, está um bosta de um prefeito lá de Manaus, agora, abrindo covas coletivas. Um bosta.” O presidente disse que Virgílio estava “aproveitando” a pandemia para levar um “clima desse, para levar o terror ao Brasil”.

Dias após a reunião com ministros, em 4 de maio, a Abin informou sobre chegada de reforço de 300 urnas funerárias a Manaus, cidade já com a capacidade de enterros esgotada.

Os informes da Abin abastecem o Centro de Coordenação de Operação do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid19 (CCOP). Coordenado pela Casa Civil, o órgão foi criado em março, quando Bolsonaro atuava para retirar o protagonismo do Ministério da Saúde na crise.

A Abin faz, desde março, diagnóstico da situação da pandemia no País e um mapeamento no exterior. Como revelou o Estadão no domingo, adota, nos documentos endereçados ao Planalto e a ministérios, discurso oposto ao do presidente sobre o tema. Procurados, a Presidência da República e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) não se manifestaram.