O Estado de São Paulo, n.46256, 09/06/2020. Política, p.A6

 

Governo revoga decreto de avião para Exército

Marcelo Godoy

Roberto Godoy

09/06/2020

 

 

Integrantes da FAB haviam criticado a ‘oportunidade da medida’, em um período de crise financeira e de verba escassa para Defesa

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O presidente Jair Bolsonaro revogou o decreto que autorizava o Exército a ter sua aviação de asa fixa depois de a medida despertar críticas de oficiais da Força Aérea Brasileira (FAB), conforme mostrou o Estadão. A mais forte delas foi feita pelo ex-comandante da FAB, tenente-brigadeiro Nivaldo Rossato.

Rossato comandou a FAB até 2019. Ele escreveu em documento enviado a brigadeiros que “alocar recursos de dezenas de milhões de dólares para treinar tripulações, adquirir e adequar aeronaves para o Exército enquanto dezenas de aeronaves da Força Aérea estão paradas por falta destes mesmos recursos chega a ser um acinte no momento em que as dificuldades orçamentárias comprometem a missão das Forças Armadas”.

O Ministério da Defesa não se manifestou sobre a carta de Rossato. Em nota, a pasta informou ter constatado, após a publicação do decreto, que a redação usada “permitia entendimentos diversos e não desejados na proposição da medida”. Oficiais da Aeronáutica disseram que o decreto era tão abrangente que permitia ao Exército ter qualquer tipo de aeronave de asa fixa, até aviação de caça. A nota do ministério concluiu afirmando que, “a fim de promover o reestudo da proposta, o MD solicitou, de forma imediata, sua revogação”. Assim, a situação voltou à definida pelo decreto anterior, de 1986, que autoriza ao Exército ter apenas helicópteros. Brigadeiros ouvidos pelo Estadão comemoraram a revogação do decreto.

A Defesa não disse por que o parecer feito em 2016 pelo general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que aconselhava o Exército a renovar seus helicópteros Puma em vez de comprar aviões foi deixado de lado. Embora a medida tenha sido submetida à aprovação do comando da FAB, ela acabou – nas palavras de um tenente-brigadeiro –, apenas “deglutida” pela Força.

Surpresa. Entre os esquadrões operacionais do Comando de Aviação do Exército (Cavex), o decreto presidencial, que permitiria o uso de aviões, além da atual frota de helicópteros, foi recebido com surpresa. O assunto não estava sendo discutido na organização e, segundo um líder de equipe ouvido pelo Estadão, é considerado necessário, mas não prioritário. De acordo com um outro oficial da área, “seria mais importante no momento a aquisição de um certo número de helicópteros de ataque, artilhados com canhões, capazes de disparar foguetes e mísseis”.

Um ex-integrante do Cavex lembrou que a pretensão de manter uma frota de aeronaves de carga leve própria da Força Terrestre é antiga. Pouco depois da 2.ª Guerra, os EUA cederam ao Brasil um certo número de cargueiros bimotores. O Exército apresentou um projeto para montar uma frota de transporte aéreo. A iniciativa não prosperou. Atualmente, o Comando do Exército mantém um plano de aperfeiçoamento em todas as áreas que toma como meta de referência a segunda metade dos anos 2030. Em relação à aviação, o documento contempla a possibilidade do emprego de aviões pelo Exército.

A curto prazo, entretanto, há um problema a ser resolvido, destacou um integrante do Alto Comando: dar capacidade de pronta resposta ao atendimento das necessidades logísticas da Força em locais como as fronteiras da Amazônia. Dois casos são emblemáticos. Na região de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela, estão sete Pelotões de Fronteira. Em Tabatinga, há outros três.

“Estão isolados, sem possibilidade de acesso por terra e com grandes limitações de navegação nos rios”, disse o militar. Suprimentos, correspondência e insumos médicos só chegam a esse pessoal pelo ar. “A FAB faz esse trabalho abrigado em sua agenda, mas, com o investimento de uma fração do que custaria criar um novo serviço, poderia expandir enormemente o atendimento ao Exército, dentro do princípio da interoperabilidade.”

Compra

Em 2018, foi anunciada a intenção do Exército de comprar oito aviões Sherpa Short C-23, bimotores desmobilizados pelos EUA, que transportam 3,5 toneladas de carga. A compra não se confirmou.

Frota

100

aviões de transporte tem a frota da Força Aérea, com potencial de voar acima de 50 mil horas/ano. Mas, por falta de recursos, consegue voar pouco mais da metade deste esforço, disse o ex-comandante da FAB Nivaldo Rossato.

Reavaliação

“(O decreto) permitia entendimentos não desejados (...) A fim de promover o reestudo da proposta, o MD solicitou sua revogação.”

Ministério da Defesa

EM NOTA

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Brigadeiro segue exemplo americano e culpa presidente

Marcelo Godoy

09/06/2020

 

  

“É inaceitável tentar envolver as Forças Armadas em uma ruptura.” A frase foi dita pelo tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, mas lembra o exemplo de outras, ouvidas nos Estados Unidos: “Quando me tornei militar, há 50 anos, fiz um juramento de apoiar e defender a Constituição”. Ela prossegue. “Nunca sonhei que tropas que fizeram o mesmo juramento que eu pudessem receber a ordem, sob quaisquer circunstâncias, de violar os direitos constitucionais de seus compatriotas.” Quem as disse foi o general James Mattis, ex-secretário da Defesa de Donald Trump. Pela primeira vez na história recente dos EUA, um presidente quis usar o Exército para controlar manifestações populares, garantidas pela Primeira Emenda. O exemplo de Mattis frutificou. Quase uma centena de líderes militares assinou manifesto contra Trump.

Desde que começaram os atritos de Bolsonaro com o Supremo Tribunal Federal ou desde que seus filhos e amigos são alvo de investigações, quase duas dezenas de manifestos foram feitos por militares brasileiros que só tiveram olhos para decisões do STF, mas não disseram palavra sobre as denúncias contra o bolsonarismo. É nesse contexto que surge o exemplo do tenente-brigadeiro Ferolla. Ex-presidente do Superior Tribunal Militar, ele mandou mensagens aos amigos, alertando-os sobre as iniciativas dos militares ligados ao Planalto. “Quem gera as crises é o presidente.” Ferolla representa o distanciamento do governo de parte dos brigadeiros, ainda mais após o decreto, que acabou revogado, que dava ao Exército o direito de ter aviação de asa fixa, enquanto os aviões da FAB ficam em solo por falta de combustível.

Ferolla conta sua impressão sobre o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril: “Dentro de um prostíbulo seria imoral”. E Ferolla explica por quê. “Cria-se um ambiente em que ninguém respeita nada. Isso é falta de liderança. O chefe tem de dar o exemplo.” É aqui onde Trump e Bolsonaro falham miseravelmente: o exemplo. O caso de Bolsonaro seria agravado por lideranças militares que o cercam e assistem a tudo em silêncio. Esse é o caso da pasta da Saúde, onde está o general Eduardo Pazuello, que parece acreditar que a Nação não precisa saber da gravidade do momento. Para tanto, alguém lhe deu o “bizu” de que bastaria não contar os mortos pelo coronavírus ou contar de forma diferente. Esse é o exemplo que Bolsonaro dá à Nação. E, assim, as críticas ao presidente vão se avolumando entre os militares.