Correio braziliense, n. 20882 , 26/04/2020. Cidades, p.18/19

 

Heróis de uma luta diária

Mariana Machado

26/07/2020

 

 

Mais de 1,2 mil profissionais da saúde foram infectados por coronavírus no Distrito Federal. O Correio conta histórias de quem partiu e de quem sobreviveu numa guerra ainda sem data para acabar e que deixa sequelas profundas no dia a dia desses servidores

Plantão da madrugada. Na emergência do hospital, todos os dias mais pacientes chegam com os mesmos sintomas: febre, dor de cabeça, tosse, dificuldade de respirar, perda de olfato e paladar. É a covid-19 que se espalha dia após dia. Enquanto a indicação geral é de se manter distanciamento, cabe aos profissionais da saúde, a postos na linha de frente, prestar socorro. Eles são os mais cuidadosos: máscara, face shield, aventais e toda a paramentação disponível no momento. Mesmo assim, são seres humanos, suscetíveis ao contágio e, consequentemente, ao risco de não sobreviver. No Distrito Federal, até o momento, 16 desses trabalhadores da área de saúde morreram, vítimas de coronavírus.

Segundo a Secretaria de Saúde (SES), até 10 de julho, mais de 46 mil profissionais da rede pública, além de 2.637 terceirizados que trabalham nas unidades de saúde, fizeram testes para covid-19. Ao todo, 1.237 servidores, e 63 terceirizados tiveram resultado positivo para a doença. Em nota oficial, o órgão esclarece que, aqueles infectados, são afastados das funções, e cumprem quarentena de 14 dias. “Todos do núcleo familiar são orientados a permanecer em isolamento e, se apresentarem sintomas, devem procurar a unidade de saúde mais próxima para avaliação”, destaca o texto.

Além disso, todos os trabalhadores da área passam por treinamento nas unidades em que atuam. “Aqueles que prestam assistência diretamente aos pacientes com covid-19 seguem os fluxos de atendimento preconizados no Plano de Contingência da SES”, garante a pasta. “As equipes recebem orientações periodicamente quanto ao uso adequado dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e são treinadas para prevenir a contaminação e disseminação da covid-19.”

O Correio conversou com familiares e amigos de heróis que se foram, assim como aqueles que, depois de quadros graves, conseguiram sobreviver.

Comprometimento e seriedade

Uma mão sempre disposta a ajudar. Assim era o técnico em enfermagem do Hospital Regional da Asa Norte (Hran), Hiram Rodrigues Lima, 47 anos. Aqueles que o conheceram são unânimes: prestatividade em pessoa. “Quando eu via que ele estava na nossa escala de plantão, já ficava tranquilo, porque sabia que a coisa iria fluir com comprometimento”, recorda Atoniel Queiroz, 46, colega de trabalho de Hiram.

A amizade dos dois nasceu no box de emergência do hospital. “Era um camarada focado no trabalho. Sempre o primeiro a chegar, e o último a sair. Está sendo um desafio sem ele, mas a nossa profissão não nos dá tempo de juntar os cacos. As demandas falam mais alto.” Também técnica em enfermagem, Yaskara Cavalcanti, 49, lembra do carinho do amigo com colegas e pacientes. “Era alto-astral. Nunca o vi reclamando de trabalho, nem de nada.” Para afastar as preocupações diante da pandemia, ele brincava. “A gente tem essa frase boba: não pego. No meu corpo, esse vírus morre”, lembra a amiga. “Era uma piada. Falar que era invencível, como uma válvula de escape.”

Fora do trabalho, era esposo e pai dedicado. Do casamento de mais de 10 anos, a vendedora Rosecleia Gerônimo da Silva, 28, guarda na memória a dedicação de Hiram. Juntos, eles tiveram duas filhas. “Ele nunca deixou faltar nada em casa. A gente não tinha uma vida de luxo, mas estava sempre preocupado se tinha leite e pão em casa para as meninas”, declara. “Ele era meu refúgio quando tinha algum problema. Sempre foi a pessoa com calma para conversar. Não era de falar muito, mas quando falava, todos admiravam”, emociona-se.

Quando voltava do trabalho para casa, em Águas Lindas (GO), tinha o cuidado de se higienizar primeiro e manter distância da família. Mesmo assim, contraiu o vírus e precisou dar entrada no Hran. Durante o processo de internação, ele e Rosecleia conversavam por videochamada. A última comunicação, aconteceu na madrugada em que ele foi entubado, em 17 de junho. “Ele me mandou mensagem, pedindo desculpas pelas vezes que discutíamos, e dizendo que nos amava. Eu liguei para ele e pedi calma, porque tudo daria certo.”

Sem o companheiro, ela agora tenta ser forte para as filhas. “Elas têm esperança de que todo dia ele vai chegar em casa. Voltei a trabalhar na semana passada e está sendo difícil sorrir e conversar. Sou pai e mãe ao mesmo tempo.” Enquanto isso, ela espera o auxílio-funeral, que até hoje não foi pago pelo governo. Segundo a Secretaria de Saúde, para obter o ressarcimento, é necessário ir à gerência de pessoas da unidade em que o servidor trabalhava e apresentar nota fiscal da despesa. “Sobre a aposentadoria, a viúva deve fazer o requerimento também na Gerência de Pessoas. A documentação será enviada ao Iprev que faz a análise da legitimidade do benefício e autoriza a concessão”, informou o órgão.

Frase

“Ele nunca deixou faltar nada em casa. A gente não tinha uma vida de luxo, mas estava sempre preocupado se tinha leite e pão em casa para as meninas”

Rosecleia Gerônimo, esposa de Hiram Rodrigues

Generosidade e cuidado

Sonhar com um mundo melhor e poder ajudar o próximo foi o que fez Antônio Júnior Araújo Silva, 50, buscar a enfermagem. Do front de batalha, no Hospital Regional do Guará (HRGU) dedicou-se a ajudar pacientes, doando os conhecimentos em saúde, mas também o apoio fraternal. Em 20 de junho, após uma batalha interna contra o coronavírus, ele não resistiu e acabou falecendo.

No próximo dia 27, completaria 18 anos de casado com a advogada Viviane Theodoro, 45, a quem conheceu ainda na infância. Juntos, tiveram um menino. “Eu costumava dizer que, com ele, nosso filho conseguia tudo. Eu era a rigorosa, e ele, o coração mole. Júnior sempre foi parceiro demais”, emociona-se. Ela lembra do marido como alguém generoso e apaixonado pela profissão. “Veio ao mundo para fazer o bem. Amava a enfermagem e trabalhava com prazer. O que melhor fazia era cuidar, e morreu no exercício do dever.”

Os dois contraíram a doença na mesma época, mas como o caso dele foi mais grave, ficaram separados durante os 17 dias em que ele esteve internado. Em casa, o casal tinha rigor nos cuidados higiênicos. “Ele não chegava perto de mim antes de tomar banho, já na porta, tirava as roupas contaminadas e deixava de molho. Mas foi inevitável”, lamenta. “É uma doença muito difícil de lidar, e as pessoas não se conscientizam, enquanto profissionais da saúde estão dando a cara a tapa para salvar vidas, muitos não estão nem aí.” Em meio ao luto e a dor, ela destaca a generosidade do enfermeiro. “Ele era puro amor, daqueles que fazia o bem, sem olhar a quem. Vai fazer muita falta.”

Frase

“Veio ao mundo para fazer o bem. Amava a enfermagem e trabalhava com prazer. O que melhor fazia era cuidar, e morreu no exercício do dever”

Viviane Theodoro, esposa de Antônio Júnior

Linha de frente - Infecções

46.061

profissionais da rede pública testados

1.237

positivos

2.637

terceirizados testados 63 positivos

Fonte: Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal

49 dias de internação e UTI

Nem sempre, a luta contra a covid-19, mesmo em casos graves, termina em tragédia. Assim foi com a técnica em enfermagem Sâmia Regina Aragão, 57. Quando a pandemia chegou, ela estava na linha de frente da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Samambaia. Ali, recebendo os pacientes com todas as patologias diferentes, acabou contraindo o vírus. O quadro dela evoluiu rapidamente e resultou em 49 dias de internação, sendo 33 em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Muitos colegas também adoeceram, mas eu fui o caso mais grave”, recorda.

Em 9 de maio, ela recebia o diagnóstico positivo e dava entrada no Hospital Regional da Asa Norte. De lá, foi transferida para o Hospital Daher, no Lago Sul e, então, para o Hospital DF Star, na Asa Sul. Durante as internações, parou de andar, falar, e esteve a maior parte do tempo inconsciente. “Às vezes tiravam a sedação, porque a minha pressão baixava demais.” Foi traqueostomizada e entubada.

Durante todo o período, angústia para a família. “Meu marido ficou muito angustiado, até porque passou quase o período inteiro sem me ver. Meu filho, que também é técnico em enfermagem, tomava a maior parte das decisões. Os médicos ligavam para ele diariamente pedindo autorização para os procedimentos e ele dizia: se é para o bem da minha mãe, pode fazer”, emociona-se Sâmia.

Agora, ela luta para se recuperar das sequelas. O vírus prejudicou a memória dela. “Não lembro muita coisa, exceto do médico dizendo que iria me entubar. Foi quando liguei para o meu marido avisando a situação”, detalha. Mesmo sem ter mais a doença no corpo, ela ainda sente fraqueza, tontura, e tremedeira. Além disso, está com os rins comprometidos, e os pés inchados e doloridos. Por dia, são seis medicações diferentes. Ainda sem condições de voltar ao trabalho, ela avalia a possibilidade de se aposentar, uma vez que tem 37 anos de contribuição, sendo 20 pela Secretaria de Saúde. Até lá, alerta para que a população evite ir às ruas. “Tem tanta gente olhando só para si mesmo. O que custa ficar em casa? A covid-19 tira as forças da gente. Abaixo de Deus, foram os médicos que me salvaram.”

Frase

“Meu filho, que também é técnico em enfermagem, tomava a maior parte das decisões. Os médicos ligavam para ele, diariamente, pedindo autorização para os procedimentos e ele dizia: se é para o bem da minha mãe, pode fazer”

Sâmia Regina, técnica em enfermagem

Contaminado após fazer cirurgia

 “Essa doença chegou para mostrar que ninguém está acima de ninguém”. Assim avalia o cirurgião Leonardo Rodovalho, 45. O médico do Hospital Regional de Taguatinga (HRT) também é um sobrevivente da covid-19, após ter contraído o vírus enquanto salvava outras vidas. “Era uma segunda-feira de maio e eu fiz uma cirurgia de três horas em um paciente com colostomia, que precisava de reconstrução do trânsito intestinal”, recorda. “Usei máscara de proteção, mas foi um longo período e, depois do procedimento, ainda fui visitá-lo, no dia seguinte, na enfermaria, para saber como estava.” Dias depois, o mesmo paciente era internado em UTI, infectado por coronavírus.

Ele começou a ter os primeiros sintomas: dores no corpo, e calafrios. “Achei que pudesse ser dengue, porque na semana anterior tinha feito o teste para coronavírus, e recebido resultado negativo”, lembra Leonardo. Contudo, os sintomas evoluíram para febre, mal-estar, falta de apetite e tosse. Depois de ser examinado no hospital, a primeira tomografia mostrou que o pulmão esquerdo com 30% de comprometimento, o que resultou na internação em 25 de maio.

Foram sete dias de leito, sendo dois deles em UTI. Os conhecimentos da formação o permitiam compreender a situação em que estava a partir da leitura que fazia dos equipamentos que o monitoravam. “O problema maior é o isolamento. A UTI te dá segurança, porque você é monitorado, mas, ao mesmo tempo, gera uma angústia muito grande porque, quando a saturação baixa, você vai ficando preocupado”, pondera. “Na primeira noite, não dormi nada. O tempo todo era o receio do tubo vir.”

Hoje, de volta à ativa, Leonardo avalia os riscos que os profissionais da saúde correm. “A chance é muito maior de contrair o vírus, porque a gente está em contato direto. Apesar de nos protegermos, e usar os equipamentos necessários, a gente acaba se contaminando. Nesse contato o tempo todo, a gente está preocupado.” Agora, ele celebra a recuperação. Na última terça-feira, recebeu o resultado da sorologia, mostrando que ele desenvolveu anticorpos para a doença. “A evolução do vírus é muito imprevisível, e não chega só em quem tem comorbidade. A máscara sufoca, mas, depois desse susto, o sufoco é muito menor que o de estar em uma UTI.”