Correio braziliense, n. 20883 , 27/07/2020. Brasil, p.4

 

22,8 mil leitos reabertos no ano

Bruna Lima

27/07/2020

 

 

Após uma década de fechamentos de leitos do Sistema Único de Saúde (SUS), foi em meio ao cenário caótico de transmissão da covid-19 no Brasil que 22,8 mil vagas para internação foram reabertas. É a primeira vez nos últimos 10 anos que, ao invés de interromper o serviço, houve investimento nesse tipo de infraestrutura para mais de 75% da população brasileira que depende exclusivamente de unidades públicas de assistência em saúde. O desafio é manter parte das ampliações funcionando no pós-pandemia, já que os leitos foram contratados temporariamente.

Segundo levantamento feito pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), junto ao Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), quase 41 mil leitos públicos foram fechados desde 2011, quando o país contava com 335 mil espaços de internação do SUS, destinado para internações superiores a 24 horas. Em janeiro de 2020, o número baixou para 294 mil. De acordo com o CFM, 20 estados e 19 capitais brasileiras perderam leitos na rede pública na última década. Só no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 11.055 leitos foram desativados. Na sequência, aparecem São Paulo (com 8.031 a menos) e Minas Gerais (-5.168).

Devido à pandemia, somente entre fevereiro e junho houve um incremento de mais 22,8 mil leitos de internação. Em Roraima, a rede pública passou de 1.064 para 1.439 leitos (aumento de 35%), grande parte deles na capital Boa Vista. Amapá passou de 953 para 1.152 leitos (21% a mais), assim como Sergipe, que teve o incremento de 353 leitos no período (15%). Em números absolutos, os estados que mais habilitaram leitos de internação no último ano foram São Paulo (5.354), com ênfase na capital, onde foram abertos quase 1.800 novos leitos; Pernambuco (2.697), também em função do aumento de 1.155 unidades na capital; e Minas Gerais (2.525).

O que parece ser um bom sinal, não necessariamente se traduz em um legado. Isso porque a maioria dos contratos é temporária e provisória, voltada para hospitais de campanha. Para o CFM, a tendência é que, com o fim da crise causada pela covid, voltem a ser desativados. “Muitos desses leitos foram criados no formato hospital de campanha, instalados em praças públicas, em ginásios, campos de futebol. A gente sabe que eles serão desativados e nós vamos perder a maioria. O local onde foram criados não proporciona uma perspectiva positiva”, explica o primeiro secretário do CFM, Hideraldo Cabeça.

Dentre as especialidades mais afetadas no período, em nível nacional, estão psiquiatria (-19.690), pediatria clínica (-13.642 leitos), obstetrícia (-7.206) e cirurgia geral (-4.008). Já os leitos destinados à clínica geral, ortopedia e traumatologia, oncologia e saúde mental foram os únicos que sofreram acréscimo superior a mil leitos na última década. “As áreas básicas estão com essa defasagem quando a gente vai esmiuçar as pesquisas. É claro que os leitos clínicos estão elevados, sobretudo devido a esse aumento temporário em meio à pandemia”, diz.

Procurado sobre planejamentos em manter abertos leitos de internação habilitados durante a pandemia, o Ministério da Saúde informa: “Foram habilitados 11.084 leitos de UTI com investimento de R$ 1,5 bilhão. Todos os esforços estão direcionados para garantir a assistência à população diante da pandemia. Após o período de emergência, a manutenção será discutida com gestores estaduais e municipais de saúde.”

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Desafio contínuo para entender o novo vírus

Bruna Lima

27/07/2020

 

 

A história da doença, o modo e a intensidade de transmissão, e o papel de cada faixa etária e de cada grupo populacional, são variáveis que impactam na atualização dos modelos que, dizem os especialistas, devem ser considerados nos estudos para um combate mais eficaz

A ciência muda. E muda em velocidade mais acelerada quando pouco se conhece sobre determinado tema. Por isso, os avanços precisam ser rápidos e eficientes para salvar vidas. Esse é o contexto da pandemia do novo coronavírus. A cada dia, surgem atualizações dos efeitos de medicamentos no tratamento de infectados, avanços nas buscas pela vacinas, novas informações capazes de modificar o entendimento do processo de imunização. Mais dúvidas. Traduzidas em novos desafios para os pesquisadores, gestores e sociedade.

“Estamos vendo como a ciência funciona em 'tempo real', aprendendo, a todo o momento, tanto sobre as características biológicas do novo coronavírus quanto sobre como a doença causada por ele se espalha na população”, afirma o pesquisador José Alexandre Diniz Filho, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Diniz coordena um dos diversos grupos de pesquisa brasileira que, diante do avanço da pandemia, tentam antecipar a trajetória da doença e avaliar a demanda hospitalar e a letalidade, usando modelos matemáticos e computacionais. “Embora métodos estatísticos simples possam ser utilizados para prever esses eventos em curto intervalo de tempo (15 ou 30 dias), isso não é tão informativo para o planejamento das políticas públicas. Por outro lado, pensar em projeções de longo prazo cria uma série de desafios”, problematiza o pesquisador.

A história natural da doença, o modo e a intensidade de transmissão, o papel de cada faixa etária e de cada grupo populacional nos contextos socioeconômicos são algumas das variantes que impactam na atualização dos modelos e devem ser levadas em consideração, como ressalta o pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Mauro Sanchez. “Quando você incorpora fatores sociais, econômicos e outros nas projeções, somando seus efeitos ao que já se sabe sobre a atuação do vírus em si, você está fazendo ciência de forma adequada e responsável. O que não devemos fazer é tomar decisões, com consequências importantes para a saúde pública, sem embasamento científico”, destaca.

Sanchez é membro do Portal Covid-19 Brasil, plataforma elaborada por pesquisadores da UnB e da Universidade de São Paulo (USP). A iniciativa debruça-se em fazer projeções do novo coronavírus no país, com o objetivo de contribuir no enfrentamento da pandemia e, para isso, precisa ser diariamente atualizada. “A cada nova descoberta, com certeza, os modelos podem e devem ser calibrados para que se tenha informação correta e previsões mais acuradas. Um bom exemplo é o papel das crianças e adolescentes na pandemia, o que ainda é um assunto controverso. E este ponto seria fundamental para decidir com mais segurança, do ponto de vista científico, a melhor estratégia e o tempo para a reabertura das escolas”, aponta o especialista.

Volta às aulas

Uma recente análise do MonitoraCovid-19, grupo de acompanhamento da epidemia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), aponta que o retorno às aulas pode representar um perigo a mais para cerca de 9,3 milhões de brasileiros pertencentes ao grupo de risco (idosos ou pessoas com comorbidades). Isso porque eles vivem na mesma casa que crianças e adolescentes em idade escolar (entre 3 e 17 anos). Ainda que os centros educacionais adotem as medidas de segurança, o estudo aponta que os estudantes correm mais risco de se infectar ao usar transporte público ou ter contato com crianças e adolescentes que não seguem as recomendações.

“Estimamos, no estudo, que se apenas 10% dessa população de risco que vive com crianças em idade escolar vierem a precisar de cuidados intensivos, isso representará cerca de 900 mil pessoas na fila das UTIs. Além disso, se aplicarmos a taxa de letalidade brasileira nesse cenário, é algo como 35 mil novos óbitos”, analisa o epidemiologista envolvido no estudo Diego Xavier.

Antes de promover o retorno, o sanitarista e vice-diretor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz, Christovam Barcellos, frisa a necessidade dos governos de cada cidade oferecerem informações e suporte aos pais e alunos para se protegerem.