Título: Internação forçada de usuários de droga
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 21/01/2013, Brasil, p. 6

Em meio ao agravamento do problema do crack que assola o país, e sobre o qual as autoridades públicas simplesmente não sabem o que fazer, uma ousada ação capitaneada pelo Governo de São Paulo começará hoje, já sob intensa polêmica. Moradores de rua com dependência química serão encaminhados a um centro de triagem para, caso verificada a necessidade, serem internados, mesmo contra a própria vontade. O tratamento involuntário ou compulsório é uma medida cercada de controvérsias porque transita entre a liberdade individual e a segurança coletiva, ao mesmo tempo em que pode disfarçar uma política de limpeza social, especialmente às vésperas de eventos internacionais importantes, como a Copa das Confederações, este ano, e a Copa do Mundo, em 2014.

Para minimizar as críticas e aumentar a eficácia da medida, o governo paulista elaborou a ação, com a ajuda do Tribunal de Justiça, do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil e da Defensoria Pública de São Paulo. Representantes dessas instituições e profissionais de saúde ficarão no centro de triagem, que funcionará das 9h às 13h, dentro do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod), no bairro do Bom Retiro, para receber os dependentes encaminhados. A ideia é tentar fazer o maior número de internações voluntárias, por meio do convencimento, e usar a rede ambulatorial comunitária. Mas o foco da reunião de tantos profissionais será viabilizar, de forma rápida e sem brechas para questionamentos, as internações involuntárias e compulsórias.

Na avaliação do presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva, a iniciativa merece elogios. “É uma excelente conduta, desde que não se torne um expediente de limpeza urbana. É preciso verificar quem precisa de desintoxicação em hospital geral, quem pode fazer em tratamento ambulatorial, quem deve ser acompanhado em hospital psiquiátrico. Só o médico poderá definir, caso a caso. Se for uma ação generalizada de internar todo mundo sem protocolo definido, isso vira cárcere privado”, afirma o psiquiatra. A grande preocupação, segundo Silva, vem do estado atual da rede de saúde pública. “Temos locais preparados e profissionais habilitados para fazer um tratamento de altíssima complexidade, como o de crack?”, questiona.

Para o psiquiatra Augusto César de Farias Costa, diretor de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, as internações involuntárias e compulsórias não devem ser objeto de política pública. “Como casos isolados, tudo bem. Ou seja, se uma equipe de saúde encontrar um usuário correndo risco de morte, pode chamar o Corpo de Bombeiros e, eventualmente, iniciar um processo de internação compulsória ou involuntária, mas não como política”, afirma. De acordo com ele, o DF não tem nenhuma “pretensão, formulação ou intenção” de repetir a experiência de São Paulo. “Para abordar as pessoas que estão em situação de rua em cenas de uso de crack, temos equipes de saúde que fazem não apenas o vínculo necessário para a desintoxicação, mas prestam assistência em outras esferas, como prevenção à gravidez e às DSTs e combate à desnutrição”, explica Costa.

Equilíbrio

Promotor de Justiça de Defesa da Saúde de Belo Horizonte, Bruno Vieira Soares diz que é preciso buscar equilíbrio na política empreendida por São Paulo. Ele recebe ao menos um pedido de familiares para internação compulsória, diariamente. “Nem podemos aceitar que o paciente venha a se tratar somente quando tiver vontade nem internar involuntariamente sem evidências científicas e previsão legal”, afirma o promotor. Na capital mineira, nenhuma ação institucional de internações compulsórias foi tentada. “Há uma resistência da prefeitura, que trabalha na lógica da desinternação”, explica.

O Rio de Janeiro, por sua vez, foi a primeira cidade a fazer internações contra a vontade dos dependentes, mas somente de menores de 18 anos. A ação já tirou das cracolândias, desde maio de 2011, 256 crianças e adolescentes. Depois de uma triagem, os usuários vão para a rede de abrigamento mantida pela Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) do Rio. Eles passam por atendimento psicológico e clínico, com medicamentos e oficinas, reaproximação da família, até serem desabrigados.

Experiências dessa natureza têm levado outros municípios e estados a pensarem na promoção das internações forçadas. É o caso de Pernambuco. Lá, o Ministério Público aguarda apenas um documento formal da Sociedade Pernambucana de Psiquiatria para cobrar ação semelhante. “Se não houver termo de cooperação, como fez São Paulo, teremos de demandar judicialmente para implantar esse sistema de internações compulsórias em Pernambuco”, explica a promotora Helena Capela, da Promotoria da Saúde do Recife. O modelo atual de tratamento no sistema público, segundo ela, é “falido”.

Se não houver termo de cooperação, como fez São Paulo, teremos de demandar judicialmente para implantar esse sistema de internações compulsórias em Pernambuco”

Helena Capela, promotora de Justiça de Defesa da Saúde do Recife

Conceitos

Há sempre muita confusão quando algum governo estadual ou prefeitura fala em internações contra a vontade do paciente como estratégia de combate ao crack e outras drogas. Entenda as três definições sobre essas intervenções:

Internação voluntária: Quando o paciente solicita que seja internado e o profissional de saúde concorda com a necessidade de internação. Em casos de dependência química ou de outros distúrbios psiquiátricos, a avaliação fica a cargo do psiquiatra.

Internação involuntária: Solicitada por terceiros, geralmente familiares, no momento em que o paciente está em surto ou risco de morte. Se confirmada a necessidade de internação pelo médico, o paciente é retido contra a própria vontade, mas o Ministério Público deve ser comunicado em até 72 horas.

Internação compulsória: É determinada pela Justiça, que se baseia em laudo médico e nas circunstâncias do paciente. Embora o pedido quase sempre venha da família — por meio de Defensoria Pública, advogado particular ou Ministério Público —, a internação compulsória pode ocorrer contra a vontade dos parentes.