Valor econômico, v.21, n.5046, 20/07/2020. Brasil, p. A10

 

Renda se sustenta com auxílio este ano, mas consumo recua

Ana Conceição

20/07/2020

 

 

Os programas do governo para recompor a renda de parte da população durante a pandemia de covid-19 devem fazer com que a massa de renda disponível neste ano fique até um pouco maior que em 2019, mas ainda assim a demanda das famílias deve cair forte por causa de fatores como a chamada poupança precaucional e do próprio isolamento social.

Ao mesmo tempo, o revés sem precedentes no mercado de trabalho aponta recuperação lenta do consumo e também da economia no período pós-pandemia.

Estudo feito pelos economistas Julia Gottlieb e Luka Barbosa, do Itaú, mostra que - por causa do auxílio emergencial - a massa de renda disponível deve crescer 1% neste ano, ou R$ 40 bilhões, para R$ 3,405 trilhões, sobre o valor de 2019.

Sem o auxílio, a massa de renda cairia 8%, para R$ 3,08 trilhões, um recuo sem precedentes, puxado principalmente pela diminuição da massa de salários, que cairia 13%, ou R$ 355 bilhões, nas estimativas dos economistas.

A massa de renda disponível inclui salários, benefícios previdenciários (aposentadorias e pensões), benefícios de proteção social (prestação continuada, abono, Bolsa Família) e, no caso específico de 2020, o auxílio emergencial de R$ 600 mensais, o auxílio ao emprego formal (suspensão de contrato e redução de jornada e salários) e a liberação de uma parcela do FGTS.

A conta dos economistas do Itaú leva em consideração toda a transferência já anunciada pelo governo, mais duas parcelas de R$ 300 reais aos informais (estas duas ainda não definidas), além de uma extensão do programa de apoio ao emprego formal via suspensão temporária ou flexibilização de jornada por até 120 dias (esta já formalizada). Segundo Julia Gottlieb, no cenário do banco, sem esses adicionais, a massa de salários ficaria mais ou menos estável na comparação com 2019.

O cálculo também leva em consideração que a população ocupada deve atingir o mínimo de 84 milhões de pessoas em junho e depois começar a se recuperar gradualmente, terminando o ano próximo a 88 milhões, número ainda inferior ao pré-pandemia.

O Produto Interno Bruto (PIB) deve cair 4,5% na estimativa do Itaú, que está entre as menos negativas do mercado. A mediana das projeções do boletim Focus, do Banco Central, aponta queda de 6,5%. O BC espera recuo de 6,4%.

Segundo Julia, o aumento de renda disponível pode se transformar em crescimento de consumo e, consequentemente, de PIB, no segundo e no terceiro trimestre, mas essa possibilidade não foi incorporada à projeção de queda do PIB. A economista avalia que a taxa de poupança das famílias deve aumentar temporariamente por causa do isolamento social (que limita gastos especialmente com serviços) e pelo motivo precaucional (dado o grau de incerteza ainda elevado). A poupança das famílias deve subir, segundo as estimativas, de 13,5% do PIB em 2019 para 17,6% em 2020.

As perspectivas para o crescimento do consumo são, “muito ruins” por causa da força “de uma erupção vulcânica com que a pandemia atingiu o mercado de trabalho”, avalia a consultoria AC Pastore. A parcela da baixa renda - a mais atingida pelo desemprego - na demanda das famílias é pequena, por mais que gastem todos os recursos disponíveis. “Vivemos num país onde quem comanda o consumo são as famílias das classes médias para cima, cujo comportamento em situação de risco elevado é elevar a poupança”, diz a consultoria em relatório recente.

Os programas de transferência de renda devem terminar, ou pelo menos perder muito a força no quarto trimestre. O governo tem estudado um novo programa, o Renda Brasil, que pode resultar mais em uma realocação de recursos na área social, com um foco mais definido, que aumento de renda de fato. Até lá, os programas de proteção ao emprego também deverão ter terminado.

Como ficará o emprego e a renda no pós-pandemia é em grande parte uma incógnita, por isso, mais que discutir uma extensão ou não dos programas emergenciais, o governo deveria estar tratando de formular políticas públicas de aumento do emprego, afirma Thiago Xavier, economista da Tendências Consultoria.

“Falta a discussão de como vamos incluir o trabalhador no mercado após a pandemia”, afirma. “Isso tem que ser feito para além de pensar custos e isenções. É inclusão do ponto de vista da educação, de fazer o ‘match’ [encontro] entre trabalhadores e empresas”, afirma, ponderando que uma política de renda básica e esse “match” não são incompatíveis.

No seu entender, a pandemia vai alargar a desigualdade no mercado de trabalho. Como em outras crises, a informalidade será a porta de reentrada no mercado. O emprego formal vai voltar mais lentamente. Tipos de contrato como o intermitente e por hora devem se tornar mais comuns, diz Xavier. “Num cenário em que a atividade cresce pouco e as empresas estão numa situação difícil, com a incerteza alta, o emprego tradicional com carteira vai sofrer mais.” E voltar a ter emprego dependerá muito das políticas públicas desenhadas hoje, diz.

A renda, por sua vez, tende a perder com a maior competição especialmente no mercado sem carteira. “A vida do informal vai ficar mais complicada”. O fato de o salário mínimo não ter aumento real em 2021 também deve influenciar, diz.

A Tendências estima queda de 7,3% no PIB deste ano, com queda de 6,5% no consumo das famílias. Para Xavier, o recente otimismo no mercado e do BC com indicadores de alta frequência melhores que o esperado pode não se realizar. “Isso faz sentido para o segundo trimestre. Mas o coronavírus está se mostrando um problema mais longo e mais difícil. Pode ser que o terceiro e o quarto trimestre sejam mais fracos.”