Título: 1.325 municípios detêm apenas 1% da riqueza
Autor: Nunes, Vicente; Martins, Victor, Ribeiro, Luiz
Fonte: Correio Braziliense, 20/01/2013, Economia, p. 10

Um país devastado pelo esquecimento do poder público prevalece no interior do Brasil. Os nascidos neste país do atraso são expulsos de seus lares pela miséria e obrigados a migrar para um dos 54 municípios e seis capitais que concentram a maior parte da riqueza gerada no país. Esse “clube dos 60”, como são chamadas essas cidades por alguns especialistas, é parte da fotografia da desigualdade brasileira. Em contraponto a ele, os 1.325 municípios mais pobres do país somam, juntos, o equivalente a 1% do Produto Interno Bruto (PIB).

O Brasil que comemora a chegada do pleno emprego esquece, na visão dos analistas, que as estatísticas alardeadas pelo governo são apenas amostras dos grandes centros urbanos, onde a taxa de desocupação chegou a 4,9% em novembro do ano passado, o menor da história para o mês. O problema é que, ao mesmo tempo em que se comemora a força do mercado de trabalho, cerca de 20% das famílias precisam receber o Bolsa Família para sobreviver, porque seus integrantes não têm qualquer renda.

“Os benefícios sociais apenas aliviaram a pobreza. É preciso crescimento contínuo da economia com estabilidade de preços”, alerta Marcos Troyjo, professor de economia da Universidade Columbia, em Nova York. “O desemprego está próximo das mínimas históricas. É muito bom do ponto de vista social. Mas traz um desafio: crescer com ganhos de produtividade, em todas as regiões, para que as desigualdades de renda diminuam”, pondera Caio Megale, economista do Itaú Unibanco.

Distante 450 km de Teresina, capital do Piauí, o povoado de Baixa do Sítio não consta sequer nos mapas. Com pouco mais de duas dezenas de casas, até São Pedro se esqueceu da terra onde vive dona Francisca Otacília Rodrigues, 54 anos. Há dois anos, não chove no local, o que agrava a situação de abandono vivida pelos poucos moradores — no lugar não há água, luz, esgoto, e os hospitais e bancos mais próximos ficam a pelo menos 30km de distância, na cidade de São João do Piauí.

Dona Francisca, que representa a realidade mais desanimadora do Brasil que ninguém vê, enxerga o futuro com pouca esperança. “Não tenho fé de que as coisas vão melhorar aqui, não. Já prometeram muito, mas até hoje nem a energia elétrica chegou”, conta. O propalado programa Luz para Todos, do governo federal, ainda não atendeu o povoado. Na própria cidade de São João do Piauí, considerada desenvolvida em meio à pobreza geral da região, muitos ainda vivem no escuro. A única companhia da senhora, um radinho à bateria está encostado: estragou e não há dinheiro para o conserto.

"Não tenho fé de que as coisas vão melhorar aqui, não. Já prometeram muito, mas até hoje nem a energia elétrica chegou”

Trocados contados

Se a falta de luz atormenta a vida de dona Francisca Otacília Rodrigues, 54 anos, nada lhe tira mais o sono do que o medo da sede. No povoado de Baixa do Sítio, em São João do Piauí, não há um poço. Ela conta com a Operação Carro-pipa do governo federal para receber o equivalente a 8 mil litros de água a cada três meses. “Como não é sempre que o caminhão vem, a cisterna às vezes fica vazia”, conta. O líquido tem de ser repartido com os animais. Para evitar o desperdício, é usado várias vezes na lavagem de louças e das roupas.

Quando as cisternas secam, os moradores de Baixo Sítio têm que tirar do próprio bolso R$ 300 para pagar mais um carro-pipa. O dinheiro, no entanto, é escasso para todos. Francisca é sustentada por um salário mínimo, fruto da aposentadoria do marido já morto. “Infelizmente, meu dinheiro é contado. Tenho, inclusive, que reservar parte dele para ir à cidade para sacar”, conta.

Como no pequeno povoado não há qualquer transporte público, ela tem duas opções: ou paga R$ 20 (ida e volta) para um carro que passa somente às segundas-feiras ou anda seis quilômetros “até a placa”, na rodovia, onde espera pelos carros que cobram entre R$ 4 e R$ 6 pelo trecho. “Transporte aqui é muito difícil. Quando a gente fica doente e não tem condição de esperar até segunda-feira ou ir andando até a estrada, tem que pagar R$ 100 para o carro vir aqui buscar”, lamenta.

A pouco mais de 60 km da casa de dona Francisca, no povoado de Maquiné, da cidade de Coronel José Dias, a aposentada Erudite Dias de Santana Gomes, 66 anos, sofre com o risco da Doença de Chagas. Nos galinheiros, é possível achar dezenas de barbeiros, o agente transmissor. Muitos dos vizinhos de Erudite já foram infectados, mas poucos encontram tratamento, mesmo nos hospitais de Teresina. A única solução é ir para São Paulo.

A casa simples de taipa onde Erudite vive com o marido abriga todo tipo de necessidade. Sem energia elétrica, ela, muitas vezes, restringe o cardápio a arroz puro por não ter como conservar a carne. “Dinheiro para o feijão também não tem. Quando consigo ir ao mercado, compro uma mistura com carne, o suficiente para um dia só”, conta.

A situação vivida por ela não é menos crítica do que se vê nos demais povoados do sertão piauiense. Até a água de beber é amarelada e cheia de areia. O esgoto escorre a céu aberto ou, com algum luxo, vai para as fossas. A energia, lentamente, chega a alguns povoados da região, mas muitas casas ainda não receberam os postes. Saúde e educação são regalia de poucos. São maioria nos povoados os analfabetos, como Francisca. Pelas paredes da casa onde ela vive, é possível ver o nome do marido falecido, com alguns garranchos embaixo. Francisca conta que ele tentou aprender a assinar copiando as letras feitas por um parente. “Nem sei o que tá escrito aí. Quem sabe ler me fala que é o nome dele. Mas acho que no fim ele não aprendeu foi nada”, diz.