Título: Direitos básicos desrespeitados
Autor: Nunes, Vicente; Martins, Victor, Ribeiro, Luiz
Fonte: Correio Braziliense, 20/01/2013, Economia, p. 10

Fora dos grandes centros urbanos, brasileiros vivem como se a lei fosse outra. Diretos básicos, como os trabalhistas, o de ir e vir, o de educação, praticamente não existem ou são oferecidos precariamente. Em Flores de Goiás, município distante 230 quilômetros de Brasília, parte da população compõe um país que não é o celebrado pelas estatísticas. Mais da metade dos habitantes da cidade, 51,5%, não têm carteira assinada, férias, 13º salário. Cerca de 60% dos moradores são considerados pobres pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para essas pessoas, reivindicar direitos é ainda uma tarefa complexa. Diante do transporte precário, buscar a Justiça em localidades mais próximas exige, primeiro, conseguir uma carona.

Essa realidade se torna cruel no povoado de Santa Maria, o mais pobre do município de Flores. Os moradores dali que precisam de serviços básicos, como receber a aposentaria do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) em um posto bancário, precisam caminhar por longo percurso ou contar com a boa vontade de alguém que tenha carro e ofereça uma vaga que encurte o tempo. Mas, mesmo entre os sortudos, é preciso ter muita paciência, pois as condições precaríssimas da estrada de terra podem fazer com que a viagem dure quatro horas.

“Ônibus até que tem, o problema é que passa poucas vezes ao dia, e ainda é caro", diz a técnica em enfermagem Irani Freitas Viana, 63 anos. “Por isso, a carona é coisa comum no povoado. Todo mundo que pode oferece, e quem precisa, pega. Trabalhei por dois anos em um posto de gasolina de Flores. Chegava às 06h30 da manhã. Se fosse esperar o ônibus, seria demitida, pois o primeiro só sai de Santa Maria às 8h", reclama. Mas junto com a solidariedade, vêm os problemas. “Muitas mulheres, especialmente as mais jovens, que pegam carona em caminhões são vítimas de violência. Algumas acabam partindo para a prostituição para sobreviver”, conta.

Clientelismo

O Brasil que persiste em Flores ainda é um país onde o poder público se perpetua pelo clientelismo. Dos cidadãos que têm carteira assinada, a maioria trabalha para a prefeitura e, parte deles, só terá emprego enquanto o “candidato deles” estiver no comando da cidade. Alguns poucos habitantes prestam serviço às 92 empresas instaladas no município e a fazendeiros. Porém, nem todas as firmas ou fazendas cumprem as regras e impõem condições de trabalho precárias e insalubres. A região é tão pobre, que 47,8% dos lares recebem o Bolsa Família e 131 não têm qualquer renda.

“Eu sustento meus filhos com a ajuda dos vizinhos, de parentes ou de algum bico que aparece. Essa casa aqui é da minha tia”, revela Geni Rodrigues dos Santos, 31, cozinheira desempregada e mãe solteira de cinco filhos. A casa onde ela mora é de taipa revestida, não tem energia elétrica ou laje e as paredes estão ruindo. Juan, de seis anos, filho de Geni, não entende muito bem o Brasil em que nasceu. Para ele, faltam apenas duas coisas para que sua infância seja mais feliz: uma televisão e um parquinho. “Aqui não tem onde a gente brincar”, queixa-se.

Juan, assim como todas as crianças do povoado de Santa Maria, está à espera de uma quadra inacabada e de uma creche que deveria estar pronta há 20 anos. “Quando minha filha nasceu, fiquei feliz porque estavam fazendo a creche. Ela completou 23 anos e até hoje a obra não saiu do lugar”, relata uma moradora que tem medo de se identificar. O povoado, que abriga quase mil habitantes, também não tem asfalto, esgoto, escoamento para água de chuva. A iluminação pública é precária e a telefonia, mais ainda. As linhas fixas mal funcionam e, apesar de haver uma torre da empresa Oi, não há sinal de celular e internet. “Para o meu gosto, até que a situação atual está boa. Quando eu cheguei aqui era só capim para tudo que é lado”, lembra Dona Maria, 76 anos. “Mas bem que o governo podia olhar um pouco mais para cá", afirma.

Dificuldades

Há 80 quilômetros de Flores, no povoado de JK, município de Vila Boa, Lenita Paz de Souza, 66 anos, e Abel Paz da Cosa, 82, ressaltam que quase nada mudou desde que se entendem por gente. O local onde o casal de aposentados mora é tão pequeno que não tem banco, lotérica ou posto dos Correios. “Por isso, para receber a aposentadoria e pagar as contas, temos de ir para Formosa ou Vila Boa. É muito desgastante na nossa idade”, afirma Lenita. “Aqui também não tem emprego”, diz Abel. Por isso, quando os filhos cresceram, o jeito foi migrar para Brasília, “um eldorado”, na visão do aposentado.

Jacenilde dos Santos Rabelo, 27, ainda está longe de se dizer beneficiada pelas oportunidades oferecidas pela capital do país, diante das dificuldades que enfrenta para sustentar os três filhos em Ceilândia, cidade do entorno do Distrito Federal. Ela fugiu da miséria há pouco mais de um ano. Nascida em Central do Maranhão, município próximo de São Luís, veio atrás do marido, Jacson Douglas Costa, que havia atravessado 2 mil quilômetros de estrada para tentar um emprego em Brasília, onde conseguiu uma vaga de pintor. “Lá em Central não tinha emprego, não tinha nada”, lamenta, não sem motivos.

Em Central do Maranhão, 60,13% da população é considerada pobre. Na cidade, o Bolsa Família é a única renda para 67,48% das residências. “Passei muita fome, situação que só começou a mudar depois que a minha sogra conseguiu um terreno na quadra QNR, em Ceilândia”, conta. No local, três barracos foram levantados. “Minha vida, agora, é outra. Tenho uma casa e meu marido, uma ocupação.” Ela apenas saiu da miséria total no interior do Maranhão para um lugar um pouco menos pobre. Até bem pouco tempo, a energia elétrica da QNR vinha por meio de “gatos” na rede oficial. As correspondências só passaram a ser entregues pelos Correios há um mês.

A pouco mais de 15 quilômetros da QNR, depois da divisa entre Goiás e o DF, fica a cidade de Águas Lindas. A região é uma das mais perigosas do país e, constantemente, sofre intervenção da Força Nacional de Segurança, pois a polícia local não consegue proteger plenamente a população. Em um dos bairros, o Jardim América II, falta tudo. Não tem água encanada e o posto de saúde está sempre fechado. “Para pegar ônibus, tenho que ir até à BR, já que não há paradas por aqui”, explica a diarista Rosimere Maria do Nascimento, 30.

Mãe de cinco filhos. Ela vai ao DF uma vez por semana para trabalhar em um apartamento em Águas Claras, bairro de classe média alta. “Se tiver de pagar conta ou fazer qualquer coisa, tem de ir para o Jardim Brasília (parte mais urbanizada de Águas Lindas)", diz. Para Rosimere, porém, o maior problema da região é a segurança. "Depois que escurece, acabou a paz. Todo mundo se tranca em casa. Para trabalhar, as mulheres que vão muito cedo se juntam em grupo e caminham até a parada de ônibus”, afirma.

No entender dos especialistas, o tamanho do Brasil não pode ser uma desculpa para a falta de políticas públicas. “O país é territorialmente grande, mas tem uma estrutura de poder público igualmente extensa. O Estado está aparelhado para atender mesmo os municípios distantes”, observa Caio Megale, economista do Itaú Unibanco. “Nos Estados Unidos, que são mais extensos que o Brasil, o poder público funciona melhor. Portanto, é possível avançar aqui também”, sentencia. Basta ter vontade.