Título: A dura tarefa de contar os mortos
Autor: Mader, Helena
Fonte: Correio Braziliense, 28/01/2013, Política, p. 2-7

O atendimento às vítimas começou antes de o sol nascer. No ginásio da cidade, corpos aguardavam identificação

Enviado especial Brasília e Santa Maria (RS) — O desespero de parentes e amigos das vítimas de uma das maiores tragédias brasileiras teve início ainda de madrugada, quando bombeiros e voluntários tentavam abrir caminho para entrar na boate Kiss. A notícia da tragédia correu rápida pela cidade. Quando os corpos começaram a ser retirados da boate, foi possível ouvir o som dos telefones celulares tocando. Chamadas que não seriam atendidas. Foi o início da intensa busca de pais, mães, irmãos e amigos por notícias. Os feridos foram levados para seis hospitais da cidade. Por volta de 11h da manhã, centenas de corpos começaram a ser empilhados em caminhões frigoríficos, que fizeram muitas viagens até o Centro Desportivo Municipal de Santa Maria, um ginásio com vários pavilhões, onde foi feito o reconhecimento.

Em um desses pavilhões, corpos de 120 homens e de mais de 100 mulheres estavam enfileirados, à espera de identificação e reconhecimento. Do lado de fora do ginásio, desespero, tristeza e solidariedade. A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), por exemplo, convocou todos os psicólogos e assistentes sociais do quadro de servidores para prestar auxílio aos parentes das vítimas e aos sobreviventes do incêndio. No pavilhão, uma pessoa anunciava ao microfone todo o tempo nomes das vítimas que haviam sido encaminhadas aos hospitais e os nomes dos primeiros mortos identificados.

O estudante Lucca Baiocchi ajudou a amparar a irmã de uma das vítimas do incêndio, que estava na fila para reconhecer os corpos. "Viemos para cá depois que parentes e nós, amigos, fomos a todos os hospitais de Santa Maria, mas não encontramos as colegas que estavam na boate", disse.

Policiais, bombeiros e voluntários ajudaram a distribuir água às pessoas. Por volta das 14h, a fila no Centro Desportivo da cidade já tinha mais de 300 pessoas. No começo, elas eram levadas para dentro do ginásio em duplas, mas, a partir das 14h, começaram a ser formados grupos de 10 para dar agilidade ao trabalho de reconhecimento. Quem identificava os corpos era acompanhado por um policial, um paramédico e um psicólogo, que tentavam acalmá-lo.

"Como a minha amiga não foi pré-identificada pelos profissionais, a minha colega que entrou no ginásio olhou uma a uma as meninas que estavam no pavilhão", contou Lucca. Depois de reconhecidos, alguns corpos foram levados em caixões para serem velados em outras cidades.

Além dos mortos, o incêndio deixou mais 100 pessoas feridas. Segundo a Defesa Civil, até o fim da noite de ontem, 92 ainda estavam hospitalizadas em Santa Maria. Em estado grave, 14 foram transferidas para hospitais de Porto Alegre.

O estudante universitário Angel Araújo, 24 anos, desistiu de ir à boate Kiss na última hora, porque tinha que acordar cedo no dia seguinte. Ele ainda tomou algumas cervejas com amigos em um bar perto da casa noturna, no centro da cidade. Só ontem pela manhã, ao acordar, ficou sabendo da tragédia. O universitário contou que três amigos de 24 anos esticaram a noite na boate. "Infelizmente, dois não conseguiram sair e morreram. Há ainda outro amigo meu que ficou ferido. Ele está no hospital. O movimento aqui na cidade é bastante intenso", descreveu Angel.

De acordo com o vice-reitor da Universidade Federal Santa Maria (UFSM), Dalvan José Reinert, 99 dos 233 mortos eram estudantes da instituição. "As turmas dos semestres que se iniciam organizam e fazem promoções conjuntas com os clubes da cidade. Isso é histórico. Eu tenho 35 anos de universidade e isso sempre ocorreu", disse ele. Segundo Reinert, toda a comunidade acadêmica está envolvida com a tragédia. "Cancelamos as aulas durante a semana e vamos trabalhar com os cursos e coordenadores."

Velório coletivo Dezenas de corpos, já reconhecidos pelos parentes, começaram a ser velados ainda no início da noite de ontem. Os caixões foram organizados em filas e colocados em uma das quadras esportivas do ginásio municipal. O local foi dividido ao meio. De um lado, as vítimas eram identificadas, do outro, ficaram os caixões, liberados para o velório coletivo após os trâmites burocráticos com a funerária. Os parentes também tinham a opção de levar os corpos para serem velados em outros locais. Muitas das vítimas eram de outros lugares e devem ser enterradas nas respectivas cidades.