Título: Eu pisava sobre mulheres e homens desmaiados
Autor: Mader, Helena
Fonte: Correio Braziliense, 28/01/2013, Política, p. 2-7

Sobreviventes relatam horror e responsabilizam seguranças por dificultarem a saída. Morador de Brasília ajudou no resgate dos corpos

Gaúcho da cidade de Alegrete, Murilo Xavier Lima, 22 anos, mora em Brasília há um ano e meio, onde estuda para concursos. Na quinta-feira, ele chegou a Santa Maria (RS) para visitar o irmão, aluno de fisioterapia. Dois dias depois, ambos decidiram ir à boate Kiss. A balada de sábado à noite terminou com Murilo e o irmão ajudando no resgate dos corpos e na notícia da morte de um dos amigos. "Chegamos por volta das 2h à boate e o fogo se alastrou após meia hora. O vocalista (da banda Gurizada Fandangueira) disparou um sinalizador e as chamas tocaram o teto. Ele tentou apagar com extintor e, quando não funcionou, as pessoas ficaram apavoradas", contou ao Correio, por telefone. "Tudo aconteceu em questão de dois ou três minutos. Eu e meu irmão conseguimos sair no começo. Os seguranças achavam que se tratava de briga e tentaram barrar todo mundo. Achavam que a gente estava dando alguma desculpa para sair sem pagar", acrescentou.

Quis o destino que o também gaúcho Eduardo Barcellos Nunes, 18 anos, mudasse o programa de fim de semana e preferisse prestigiar a formatura de um amigo em Santo Ângelo, a 220km de Santa Maria. O jovem viveu em Brasília durante quatro anos e cursou o ensino médio no Colégio Militar, na Asa Norte. Há um mês, a família voltou para Santa Maria e Eduardo se matriculou em um cursinho pré-vestibular. Ele esteve por quatro vezes na boate Kiss. "A estrutura do lugar era boa, bem grande e com novas instalações. Era uma das melhores boates da cidade", comentou. Segundo o estudante, apresentações pirotécnicas eram rotineiras, antes das atrações musicais. "Sempre vi shows com minifogos de artifício dentro do estabelecimento. Antes de uma banda tocar, por exemplo, surgiam faíscas no palco", lembra.

Em Brasília, onde mora há 21 anos, a advogada gaúcha Estela Lopes teve um domingo marcado pela tristeza e pela saudade. O primo, Vinicius Greff, de 24 anos, morreu dentro da boate. "Era um menino tão lindo, jovem, alegre, divertido, educado, gentil e muito amado por todos. Uma perda imensurável", lamenta. Durante todo o dia, ela e a família ficaram na esperança de encontrar Vini com vida. No fim da tarde, a morte do rapaz foi confirmada. "Os pais dele estão em choque e tiveram que ser medicados. Seu irmão gêmeo está inconsolável. Toda nossa família, espalhada pelo Rio Grande do Sul, pelo Paraná e por Brasília, se mobiliza para o enterro", relatou.

Assim como os outros jovens que estavam na Kiss, o técnico em informática Gilson Adolfo Alves, de 23 anos, só queria se divertir. Às 23h de sábado, ele havia acabado de chegar à casa dos tios, depois de uma viagem de 600km desde União da Vitória (PR). Soube da festa e decidiu curtir a noite com dois amigos, também paranaenses. Cerca de três horas depois, eles conseguiram abandonar o estabelecimento após lutarem pela própria vida e presenciarem, impotentes, o horror.

"Nós entramos e pagamos. No início da madrugada, o vocalista da banda disparou um sinalizador, a chama tocou o teto e todo mundo começou a gritar "Fogo!", "Fogo!". Na hora, eu e meus amigos olhamos para o lado e não vimos nada. De repente, começou a descer uma fumaça negra e fomos ao banheiro, mas estava cheio de gente e algumas pessoas estavam caídas no chão. Tentamos sair e dois seguranças nos impediram, ao afirmarem que tínhamos que pagar", relatou ao Correio, por telefone. "Eu caí e fui pisoteado, meu braço está machucado", afirmou, em meio ao choro.

Ele só pôde sair da Kiss depois de empurrar os seguranças. "As mulheres gritavam e choravam, e os funcionários nem davam bola." Ele contou ter visto vários mortos dentro de um caminhão. "Os bombeiros demoraram uns 10 ou 15 minutos depois que saímos. Graças a Deus, não desmaiei, se não teria morrido." Ezequiel Real usou o Facebook para descrever a madrugada de pesadelo. "Acompanhei o início do fogo, que se propagou pelo teto. Muita gente entrou em pânico, caiu e desmaiou uma sobre a outra. Era um mar de gente atirada", disse. Ele presenciou pessoas se escondendo até dentro de freezers. Ao ver que não sairia pela porta, buscou a saída lateral. "Eu olhava para baixo e via que pisava sobre mulheres e homens desmaiados." Lá fora, o remorso pesou e decidiu voltar para ajudá-las. Na área VIP, viu muitos corpos. "Tinha gente pendurada em grades, pessoas empilhadas. Não eram uma ou duas dezenas, era muita gente."