Título: O incêndio que ardeu a alma de um país
Autor: Mader, Helena
Fonte: Correio Braziliense, 28/01/2013, Política, p. 2-7

Fogo provocado por show pirotécnico em boate no interior do Rio Grande do Sul mata pelo menos 231 jovens. Estabelecimento não tinha saída de emergência

As centenas de corpos enfileirados e cobertos por lonas pretas, o choro desesperado dos que conseguiram escapar da morte, a dor dilacerante das famílias que perderam seus filhos: a descrição automaticamente remete a um cenário de guerra. Nenhuma outra expressão traduz tão fielmente as cenas presenciadas pelos sobreviventes e pelas equipes de salvamento que ontem viram arder em chamas uma casa noturna lotada de jovens, a maioria universitária. Um incêndio na boate Kiss, no município gaúcho de Santa Maria, a 300km de Porto Alegre, deixou pelo menos 231 mortos, segundo dados oficiais, 117 feridos — cerca de 40 em estado gravíssimo — e um país enlutado. A revolta e o choque com o infortúnio crescem ainda mais diante das evidências de que a catástrofe seria facilmente evitada. Investigações preliminares indicam que negligência e uma série de irregularidades causaram a maior tragédia já registrada no Rio Grande do Sul e um dos mais tristes episódios da história recente do Brasil. A presidente Dilma Rousseff, que estava no Chile, cancelou a agenda internacional e voou para Santa Maria, onde prestou solidariedade às famílias e colocou o governo federal à disposição dos gaúchos (leia mais na página 3). Em Brasília, as bandeiras foram hasteadas a meio mastro.

Um espetáculo pirotécnico com fogos de artifício causou o início do incêndio fatal. Eram pouco mais de 2h30 da madrugada de ontem e pelo menos 500 jovens dançavam ao som de uma banda gaúcha quando faíscas atingiram o forro acústico da boate Kiss — uma das mais badaladas casas noturnas da cidade e destino preferido dos milhares de universitários que vivem na região. Santa Maria tem 270 mil habitantes e é conhecida como um importante polo de ensino superior do estado. Segundo relatos de testemunhas, em menos de 30 segundos, a casa noturna já estava tomada por fumaça e fogo. Sem luz e no ambiente esfumaçado, os jovens não conseguiam encontrar a saída. O pânico generalizado atrapalhou ainda mais a fuga: na escuridão e em meio ao desespero para salvar a própria vida, alguns clientes da boate pisotearam outras vítimas. Testemunhas disseram que, no início do tumulto, seguranças teriam barrado a saída dos jovens por acharem que os clientes queriam apenas escapar sem pagar a conta. Mas, poucos segundos depois, teriam liberado a rota de fuga ao perceberem a fumaça que tomava conta do estabelecimento. O Corpo de Bombeiros informou que o alvará da boate Kiss estava vencido desde agosto do ano passado.

O estudante de medicina Murilo de Toledo Tiecher, 26 anos, estava na Kiss e sobreviveu ao incêndio. Pela rede social Facebook, ele denunciou a atuação dos vigilantes da casa noturna. "Fui um dos 50 primeiros a sair. No início do tumulto, tentaram segurar as portas e manter as pessoas ali para que não saíssem da boate. Não sei se pensavam que era uma briga e não queriam que os clientes saíssem sem pagar", revelou o sobrevivente.

Intoxicação Poucas vítimas morreram por conta de queimaduras graves. A intoxicação com fumaça foi a causa da morte da maioria dos jovens que não resistiu ao incêndio. Os bombeiros encontraram pilhas de corpos quando, finalmente, conseguiram entrar na boate. Militares e dezenas de voluntários usaram marretas para quebrar as paredes do estabelecimento, já que havia uma única e pequena porta no local. Há relatos de que o acesso estaria trancado no momento do incêndio.

Boa parte dos corpos foi encontrada nos banheiros da casa noturna. Jovens seguiram em direção aos toaletes por acreditarem que se tratava de uma saída de emergência. Diante do equívoco, a maioria não conseguiu dar meia volta para tentar escapar. Equipes de salvamento que entraram na boate logo depois que o incêndio foi controlado relataram uma cena de terror: os corpos estavam amontoados nos banheiros da boate. A maioria das vítimas tinha entre 16 e 20 anos.

À medida que os corpos eram retirados da casa noturna, caminhões transportavam os jovens mortos para o Centro Desportivo Municipal. Os cadáveres foram colocados no chão do ginásio, sobre uma lona preta, e uma fila de cerca de 500 pessoas rapidamente se formou no local: eram pais e mães desesperados por notícias ou à espera da dolorosa missão de identificar os jovens mortos na boate Kiss. Nas portas dos hospitais da cidade, outras centenas de familiares angustiados e aos prantos esperavam por notícias dos filhos feridos na tragédia. A cada morte confirmada, gritos de horror ecoavam pelo ginásio municipal de Santa Maria. Psicólogos, médicos e voluntários amparavam os parentes das vítimas, mas muitos desmaiaram no local. Autoridades municipais preveem a realização de um velório coletivo a partir da manhã de hoje. Os cemitérios preparam um mutirão para conseguir enterrar todos os mortos.

Desolação Pelo menos 85 homens do Corpo de Bombeiros trabalharam no resgate de vítimas na boate. Os militares conseguiram retirar 150 pessoas com vida do local, mas a frustração das equipes por não salvar um número ainda maior de jovens estava estampada no rosto dos bombeiros. Quando os corpos já haviam sido removidos para o ginásio e os sobreviventes seguiram para os hospitais, alguns bombeiros se emocionaram ao avaliar a real extensão da tragédia.