Correio braziliense, n. 20894, 07/08/2020. Mundo, p. 12

 

Frustração, raiva e sede de justiça

Rodrigo Craveiro 

07/08/2020

 

 

Os gritos de revolta e de raiva começaram a ecoar pelas ruas de uma Beirute em choque. “Nosso governo não é nosso governo!”; “Revolução, revolução!”; “As pessoas querem a queda do regime!”; e “Ninguém está do nosso lado!”, clamavam manifestantes, no dia em que o presidente da França, Emmanuel Macron, visitava a capital do Líbano e percorria, a pé, o porto devastado pelas explosões da última terça-feira e o bairro de Gemmayze. “Eu não estou aqui para mostrar apoio da nação ao povo libanês”, declarou Macron, ao colocar ênfase à palavra “povo” e defender “reformas indispensáveis” ao país. “Se essas reformas não acontecerem, o Líbano seguirá afundando.” O francês cobrou profunda mudança da ordem política libanesa, pediu investigação internacional e anunciou uma conferência de ajuda “nos próximos dias” para o Líbano.

Poucas horas depois, a ministra da Justiça do Líbano, Marie-Claude Najmn, foi recebida com hostilidade no local. “Renuncie, criminosa!”, bradava a multidão. No fim da noite, a frustração transbordou em protestos violentos na Praça Njimeh, e dezenas de pessoas tentaram invadir o prédio do Parlamento. As forças de segurança reagiram com bombas de gás lacrimogêneo e foram atingidas com pedras e garrafas. Nas redes sociais, a hashtag #enforquemeles viralizou. Até o fechamento desta edição, as autoridades confirmavam 157 mortos e mais de 5 mil feridos.  Pelo menos 300 mil pessoas ficaram desabrigadas.

Por meio de nota, o promotor militar e juiz Fadi Akiki anunciou a prisão de 16 pessoas — “funcionários do conselho de administração do porto de Beirute e da administração de alfândegas e operários que realizavam trabalhos no armazém” de número 12, onde as 2.750t de nitrato de amônio estavam estocadas. Segundo Akiki, a primeira fase da investigação sobre as explosões foi completada. “Mais de 18 pessoas foram interrogadas até o momento. O número de detidos à espera de investigação chega a 16, além de outros que serão alvos de apuração”, explicou. O ministro das Relações Exteriores do Líbano, Charbel Wehbe, deu prazo de quatro dias a uma comissão de investigação, criada ontem, para apresentar um “resultado detalhado sobre as responsabilidades”.

A agência France-Presse informou que, em junho de 2019, uma investigação foi aberta após queixas sobre o mau cheiro exalado do armazém. O inquérito determinou que havia “materiais perigosos, que deviam ser transferidos”.

Corrupção

A estudante de direito Tatiana Hasrouty (leia Depoimento), 19 anos, ainda tem esperança de encontrar o pai com vida. Ghassan, 59, trabalhava em um silo de grãos, no porto. “É claro que se vê raiva pelas ruas de Beirute. Se essa explosão ocorreu, foi por conta do nosso governo corrupto, que não se importou com os cidadãos e não removeu o nitrato de amônio. Eles mantiveram o produto ali e, provavelmente, ganhariam dinheiro com isso”, desabafou Tatiana ao Correio, por telefone. “Os nossos governantes fizeram isso conosco. Meu pai está desaparecido por causa da ignorância deles. Ele e os colegas nos forneciam trigo, para que fizéssemos pães. Meu pai importava-se conosco e nos mantinha, em meio a essa crise econômica. O povo libanês deveria se rebelar contra esse sistema corrupto, o qual deveria partir”, acrescentou.

Um amigo de Maha Bteich, 31, também trabalha no porto. “Todos nós estamos rezando e tentando encontrá-lo. Esperamos que ele esteja vivo, sob os escombros”, disse ela à reportagem. “Os libaneses estão experimentando a cólera, aguardando os resultados das investigações.” Por sua vez, a cineasta libanesa-americana Jude Chehab admitiu ao Correio que os moradores de Beirute estão “devastados” e “histéricos”. “Alguns prédios desabaram totalmente, nossos hospitais chegaram à superlotação. As pessoas estão acordando nos hospitais sem saber quem são e onde estão. Isso sem contar quem foi arremessado ao mar”, comentou. De acordo com Jude, os libaneses estão “fartos”. “Desde a revolução em outubro passado e dos incêndios florestais até a pandemia e a crise econômica, nosso governo nos deu apenas duas horas diárias de eletricidade para isso?”.

Em meio à dor, a rede de solidariedade da comunidade internacional e entre os próprios libaneses chama a atenção. A Jordânia construirá um hospital de campanha em Beirute no prazo de 24 horas; a China enviará médicos e suprimentos hospitalares; os EUA colocaram à disposição do Líbano três cargueiros C-17 abastecidos com comida, água e remédios; e a ONU liberou US$ 9 milhões em ajuda aos hospitais. Nas ruas da capital, centenas de voluntários removem os escombros e disponibilizam bebidas e alimentos sobre mesas de plástico. Comerciantes também oferecem serviços gratuitos, como o reparo de portas, paredes e janelas.

» Depoimento

“Meu pai está desaparecido”

“Meu pai, Ghassan, 59 anos, ainda está desaparecido. Nada sabemos sobre ele. Eu estava em casa e senti as duas explosões, na terça-feira. As janelas e os vidros se estilhaçaram por todo o apartamento. Quando a segunda explosão aconteceu, pensei que fosse morrer. Eu espero ter boas notícias sobre papai. Ele trabalha na sala de operações do silo de grãos, no porto de Beirute. Na terça-feira, telefonou para a minha mãe às 17h30. Pediu que alguém levasse ao silo um travesseiro e um cobertor, pois precisaria dormir no trabalho.

Creio que ele esteja vivo sob os escombros por uma razão: papai é muito corajoso, sábio e funciona bem sob pressão. Trabalha no porto há 38 anos e conhece cada detalhe dali. Quando a primeira explosão ocorreu, ao ver o fogo, creio que ele tenha se escondido. Somente hoje (ontem), começaram a cavar no local indicado por nós.

É hora de culpar o governo por suas ações. Nosso dinheiro está se desvalorizando. Agora, uma explosão... Eles nada fazem por nós. Não temos eletricidade, água limpa, nem nada. Nós pagamos impostos e nada recebemos em troca. Nosso governo deveria ser punido. O Líbano não merece isso.”

Tatiana Hasrouty, 19 anos, estudante de direito, moradora de Beirute e filha de Ghassan, 59