Título: Uma cidade que morreu com seus jovens
Autor: Mader, Helena
Fonte: Correio Braziliense, 29/01/2013, Política, p. 2

“Estamos todos mortos também.” A frase foi dita por uma enfermeira de 32 anos na entrada do Cemitério Ecumênico de Santa Maria. É o resumo da cidade que chora baixinho pelos cantos desde a madrugada de domingo, quando um incêndio provocou a morte de 231 pessoas na Rua dos Andradas, número 1925, o endereço do absurdo. Uma mãe sozinha no meio da rua repete inúmeras vezes o nome do filho. Dói escutar. É como se uma cidade inteira tivesse morrido junto, como se nada mais fizesse o menor sentido. O tio de uma das vítimas olha calado durante 10 minutos para a estreita porta de saída da boate como quem diz que ali jaz o evitável. Para onde se olha, há um rosto resignado à procura de uma explicação. É sofrimento até onde a vista alcança. Médicos, com estetoscópios ainda pendurados no pescoço, enxugam as lágrimas antes de entrar no restaurante. Garçons confortam os clientes e soldados do Exército compram flores para colocar nos caixões. Flores que também foram depositadas pela população na calçada da casa noturna.

A cidade se abraça nas ruas. O mendigo encostado no banco da praça diz que também morreu um pouco. “Nada faz mais sentido”, repete, cheio de razão, para ele mesmo. Em um único dia, foram 106 sepultamentos. A repetição machuca mais. Em apenas um dos cemitérios, o maior da cidade, os coveiros repetiram o mesmo gesto 52 vezes em apenas sete horas. Faltou caixão. Donos de funerárias precisaram comprar em outras cidades. Os cortejos se misturavam. O choro também. Uma senhora de 54 anos enterrou dois filhos de 20 e 17 e depois foi abraçar uma desconhecida que chorava ao lado. Era a mãe de Roger Barcelos Farias, 22 anos. Ele era segurança da boate Kiss. Trabalhava lá havia apenas três meses. Depois que o incêndio começou, entrou e saiu várias vezes. Salvou algumas vidas. Menos a sua. Inconformada, a mãe gritava para a cidade inteira ouvir. “Por que, meu filho? Por que você voltou?”. Para cada enterro, uma equipe médica. Vez por outra, familiares não suportavam a emoção e precisavam ser amparados. No fim da tarde, uma multidão se reuniu na Praça Saldanha Marinho, a poucos metros do local da tragédia, em um ato ecumênico para prestar homenagem às vítimas.

Fotos nos caixões No Centro Esportivo de Santa Maria, onde ocorreu um velório coletivo desde o dia da tragédia, fotos das vítimas eram colocadas no caixão. Devido ao grande número de enterros, era preciso obedecer a uma fila. Os cemitérios não tinham estrutura para realizar diversos sepultamentos simultâneos. “Estamos acostumados com sofrimento, mas feito este aqui nunca vamos esquecer. O senhor já viu uma multidão chorando? Pois bem. Como uma pessoa pode não carregar essa lembrança para o resto da vida? Impossível”, disse um dos funcionários. A espera prolongava o sofrimento. “Eu posso explicar 10 vezes a você, mas nunca entenderá o que estou sentindo. Só eu posso sentir esta dor. Mais ninguém. Eu morri junto com o meu filho. Só quem passa por isso pode saber”, respondeu Amara Pereira, 53 anos, com uma voz firme, quase como um desabafo, a uma repórter de televisão que lhe perguntou três vezes seguidas o que ela estava sentindo.

No ginásio, a dor aproximava desconhecidos. Vez por outra, parentes iriam confortar aqueles que velavam um corpo ao lado. Difícil ouvir os diálogos de dois pais que perderam dois filhos de 20 anos. “Eles são mártires. Morreram. Deixaram a lição de que é preciso cuidar melhor dos jovens”, dizia o enfermeiro Eduardo Penna e Souza, 54 anos. Perdeu o filho David Santiago e Souza, que cursava odontologia na Universidade Federal de Santa Maria. “Meu filho morava só. Veio apenas para estudar. Vivia bem e feliz.” Eduardo estava falando para Walter Souza. “Meu menino tinha 20 anos. É só isso que tenho a dizer”, expressou Walter.

Um pouco depois, o governador Tarso Genro chegou ao local e conversou durante cinco minutos com ele. Antes de chegar até Walter, que era o último do ginásio, abraçou todas as mães que encontrou pelo caminho encostadas nos caixões. Algumas choraram. Outras seguraram as lágrimas para escutar do governador que a Polícia Civil estava trabalhando duro para realizar um inquérito bem feito. “Vamos encontrar todos os responsáveis. Eu garanto.” Tarso Genro já tinha virado as costas e nem ouviu quando uma delas disse baixinho: “Governador, só queria o meu filho de volta. Nada mais.”

Letícia Vasconcellos, 36 anos Caixa da boate Kiss, Letícia estava em seu último dia de trabalho. Quando o incêndio começou, ela saiu da boate para pedir ajuda. O caixa ficava bem próximo à porta de saída. Letícia voltou algumas vezes para o interior da casa noturna. Como conhecia bem o local, ajudou várias pessoas a saírem pela porta principal. Parentes contam que ela fez o trajeto mais de quatro vezes. Na última, inalou bastante fumaça e morreu. “Era o último dia dela do trabalho, meu Deus. Por quê? Era o última dia”, repetia a mãe, Irce Vasconcellos (foto), durante o sepultamento. Ao lado do marido e de outra filha, precisou ser amparada por uma equipe médica que estava no Cemitério Ecumênico de Santa Maria. Letícia deixou dois filhos pequenos.

Azarias Vidal do Nascimento, 39 anos Segurança da casa de show havia três meses, Azarias (foto) estaria trabalhando na madrugada em que aconteceu a tragédia. “Era a minha escala”, conta. Mas, poucas horas antes de ir para a boate, Azarias ligou para o chefe e pediu para folgar. “Liguei porque acabei indo para um churrasco e tomei algumas cervejas. Não tinha condições de trabalhar depois de ter bebido. Poderia ser demitido se fosse para a boate daquele jeito. Por sorte, estou aqui contando a história para você”, afirmou. Na manhã de ontem, ele se emocionou durante o enterro de um colega. “Ele trabalhava comigo. Estou muito triste com tudo o que aconteceu, mas é preciso tempo para esperar a investigação. Não acredito que os seguranças impediram as pessoas de saírem”, comentou.