Título: Feridas a longo prazo
Autor: Mader, Helena
Fonte: Correio Braziliense, 29/01/2013, Política, p. 2

Eles sobreviveram a um dos piores incêndios da história do Brasil. Mas não saíram ilesos do episódio que matou 231 pessoas em uma boate de Santa Maria (RS). Mesmo os jovens liberados pelos hospitais ainda correm riscos, principalmente de inflamação e de infecção pulmonar. Além dos danos físicos, eles terão de conviver com feridas psicológicas que, se não cicatrizadas, podem levar ao desenvolvimento do transtorno do estresse pós-traumático.

No início da noite de domingo, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, alertou para o risco de pneumonia química e pediu que os sobreviventes ficassem atentos aos sinais, como tosse e falta de ar. “Quando se fala em pneumonia, as pessoas têm o hábito de imaginar bactérias, mas ela também pode ser uma reação inflamatória frente a uma agressão”, explica Ricardo Martins, pneumologista do Hospital Anchieta. A infectologista Luciana Lara, do Hospital Daher, diz que a inalação de substâncias tóxicas, como a fumaça à qual os frequentadores da boate foram expostos, desencadeia uma resposta natural do pulmão. “Ele reage, tentando eliminar a fumaça. O pulmão pode conseguir ou gerar um processo infeccioso”, diz.

De acordo com João Daniel Bringel, coordenador de pneumologia do Hospital Santa Helena, a infecção ocorre quando o órgão está mais suscetível devido à extensão dos danos sofridos. “A gente é colonizado por bactérias, mas tem um equilíbrio. Se por algum motivo a defesa foi prejudicada, facilita-se a proliferação”, diz. Bringel lembra que as vítimas em estado grave, que precisaram ser submetidas à ventilação mecânica, também correm risco de desenvolver pneumonia, já que o aparelho, embora essencial para ajudar a respirar, não deixa de ser uma agressão ao órgão.

Nem sempre os sinais se manifestam rapidamente, daí o alerta do ministro. No domingo, Padilha falou em quatro dias, mas João Daniel Bringel alerta que eles podem surgir até uma semana depois. “Ao menor indício de sintomas, os sobreviventes devem procurar assistência médica”, observa Ricardo Martins. Entre os principais indícios de uma pneumonia química estão falta de ar, tosse, cansaço, secreção e chiado no peito. Quando o pulmão está apenas inflamado, esses sintomas também aparecem, mas em menor grau. Contudo, dependendo da quantidade de fumaça inalada e do estado do pulmão, eles podem piorar. No caso de infecção, também surge febre. “Para quem está em casa, é preciso ingerir muito líquido, repousar e ficar em observação”, aconselha Luciana Lara.

Acompanhamento O pneumologista Ricardo Martins lembra que tragédias como a ocorrida na boate Kiss não são as únicas ocasiões em que há risco de se desenvolver pneumonia química. “Ninguém está livre de ter, em casa, um curto-circuito ou um aparelho queimado”, recorda. Se não houver ventilação suficiente, o pulmão pode passar pelo processo inflamatório e evoluir para uma infecção. “Acidentes acontecem, as pessoas precisam despertar para a necessidade de preveni-los”, diz. Martins recorda ainda que, quando a exposição a substâncias tóxicas é grande, é necessário refazer os exames de imagem ao longo da vida. Em casos mais raros, a inflamação pode não surgir no momento da inalação, mas se manifestar no futuro.

Os sobreviventes também devem ficar atentos para evitar que queimaduras menos graves evoluam para infecções. O dermatologista Gilvan Alves explica que o calor e a fumaça tóxica não causam alergias na pele, um órgão que, além da capacidade de regeneração, constitui uma barreira natural contra agentes externos. Contudo, quem sofreu queimadura de segundo grau — a que deixa bolhas — precisa hidratar o local constantemente, lavá-lo e protegê-lo com um curativo limpo. Caso contrário, a área pode infeccionar. “Se a queimadura for limpa e coberta, de oito a 10 dias a pele se recupera”, conta o médico.

Alergias também são incomuns nos olhos, diz Canrobert Oliveira, presidente do Hospital de Olhos de Brasília. O oftalmologista conta, porém, que os sobreviventes correm o risco de perder totalmente a visão, de acordo com o tipo de material tóxico a que foram expostos. Dependendo da agressão química, ocorre a atrofia do nervo óptico e, consequentemente, a cegueira. Canrobert diz que, em pessoas predispostas, até mesmo a inflamação deflagrada pela fumaça do cigarro e pelos agentes irritantes da bebida podem atrofiam o nervo, em um processo que ocorre lenta e progressivamente. O mesmo é verificado no caso de funcionários de postos de gasolina que inalam com frequência álcool hidratado. O oftalmologista ressalta, contudo, que não se sabe se o tipo de substância tóxica inalada pelos sobreviventes em Santa Maria terá o mesmo efeito. “Ainda não temos como avaliar. Isso vai depender dos gases que eles inalaram”, diz.