Correio braziliense, n. 20896, 09/08/2020. Saúde, p. 14

 

As apostas genéticas contra a covid-19

Vilhena Soares

09/08/2020

 

 

O sequenciamento do DNA, que começou há 20 anos, revolucionou a forma como a medicina é feita. Essa técnica proporcionou exames e tratamentos médicos mais refinados em áreas diversas, como a oncologia. Atualmente, a genética também tem sido usada como uma das principais armas no combate à covid-19. Com a ajuda dessa tecnologia, cientistas têm conseguido identificar variações de cepas do novo coronavírus e seus pontos fracos, informações valiosas para o desenvolvimento de medicamentos, vacinas e métodos de diagnóstico mais precisos. Os cientistas também acreditam que os estudos feitos com base no estudo do DNA humano podem ajudar a revelar quais pessoas são mais vulneráveis a essa nova enfermidade.

O primeiro mapeamento genético do Sars-CoV-2 foi feito em janeiro, um mês depois dos primeiros registros da infecção, com amostras colhidas em um dos pacientes da cidade chinesa de Wuhan, considerada o epicentro da pandemia. Graças a essa análise inicial do RNA do vírus, os pesquisadores chegaram à primeira descoberta importante: constataram que o transmissor da covid-19 pertencia à família dos coronavírus e, por isso, tinha semelhanças com surtos recentes, como o da síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers), em 2003.

Com a acelerada propagação da covid-19, o Sars-CoV-2 sofreu uma série de alterações na sua estrutura, o que demanda que o mapeamento genético do vírus seja feito frequentemente. O Brasil foi um dos países que fizeram essa tarefa em menos tempo: apenas 48 horas depois do primeiro caso da doença ter sido registrado em território brasileiro, em 26 de fevereiro. “Esse mapeamento foi feito rapidamente porque já estávamos preparados, realizávamos pesquisas de sequenciamento com outro patógeno, o zika”, conta ao Correio Ester Cerdeira Sabino, uma das responsáveis pelo trabalho e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP). A cientista e sua equipe mostraram que a amostra analisada, de um paciente vindo da Itália, tinha semelhanças genéticas com as do patógeno oriundas da Alemanha e recolhidas em janeiro.

O grupo de pesquisa expandiu a investigação e, no momento, avalia mais de 500 amostras de brasileiros com a covid-19 para entender como o vírus tem se modificado durante a pandemia. “Nosso estudo já mostrou, por exemplo, que, das mais de 100 linhagens que entraram no país, apenas três vindas da Europa conseguiram fazer uma cadeia de transmissão, e que elas chegaram entre o fim da última semana de fevereiro e a primeira semana de março”, detalha Ester Sabino.

Segundo a pesquisadora, o mapeamento é uma tarefa essencial para o combate à pandemia. “Esse tipo de pesquisa são tijolinhos que construímos. Ao montar o mapa genético do vírus, ele vai ser usado como base para cientistas que buscam formas de combatê-lo”, explica. “Por exemplo, cientistas que testam antivirais podem ver se as alterações dos genes interferem  na ação dos remédios. O mesmo ocorre com vacinas e diagnósticos, que podem ter o efeito modificado devido a essas alterações”, afirma.

A médica também ressalta que o mapeamento do vírus é algo que precisará ser feito durante toda a pandemia e por pesquisadores de todo o mundo. “As perguntas que temos sobre esse vírus não vão ser respondidas com apenas uma análise genética, precisamos do trabalho de todos especialistas, e que eles troquem essas informações. Aqui no Brasil, temos muitos  nessa área. Com todos esses trabalhos que têm sido feitos nos últimos meses, vamos conseguir reunir muitas informações valiosas sobre a covid-19”, aposta.

UnB

Entre as dúvidas em relação à covid-19, estão o fato de algumas pessoas adquirem formas graves da enfermidade e outras, não, e por que as pessoas respondem de forma diferente ao tratamento. As respostas para essas questões podem estar no DNA humano, segundo especialistas da Universidade de Brasília (UnB) que investigam esses fenômenos em parceria com instituições de ensino internacionais.

O  grupo pretende coletar 12 mil amostras de sangue de pessoas com perfis diversos que tiveram a enfermidade. “Estamos reunindo dados de indivíduos com idade e sexo distintos, além de informações médicas, como tratamentos usados e sintomas apresentados”, conta Silviene Oliveira, pesquisadora do Departamento de Genética e Morfologia da UnB e uma das cientistas envolvidas no projeto.

Os pesquisadores pretendem realizar o mapeamento genético das amostras recolhidas para analisar se alterações no DNA podem estar relacionadas à forma como os voluntários manifestaram a doença. “Reuniremos o máximo de informações possíveis para entender se existe alguma explicação genética para que um tratamento tenha sido positivo para uma pessoa e para outra, não, por exemplo, ou por que um indivíduo sofreu com mais sintomas em comparação com outros”, diz a cientista.

Além do Brasil (em Brasília e em outras cidades), as amostras estão sendo recolhidas na Europa e em outros países da  América Latina. “A maioria dos estudos genéticos é feita com foco apenas na população europeia e na americana. Nesse trabalho, temos dados mais diversos e próximos do nosso país, como Argentina, Chile,  México, além da Espanha e da Itália. Essa variedade é muito importante porque somos mais miscigenados, e isso pode influenciar muito o resultado”, afirma Silviene Oliveira.

Caso a pesquisa consiga mostrar alterações genéticas relacionadas à covid-19, as informações poderão ser valiosas no atendimento aos pacientes. “Se nós encontrarmos marcadores relacionados à forma grave, por exemplo, podemos avaliar a necessidade de realizar o tratamento com mais cuidado, mantendo o paciente  no hospital por mais tempo”, ilustra. “Isso é algo semelhante ao que temos no câncer, hoje. Se você tem determinada mutação relacionada a um tumor específico, sua chance de ter a doença aumenta, e, com isso, seu cuidado também precisa ser maior.”

Fita simples

Os  genes contêm as informações responsáveis para a reprodução e a replicação dos seres vivos. No caso dos humanos, esse material está presente no DNA, uma estrutura de fita dupla. Em alguns organismos, está no RNA, que também é uma fita, só que simples. O vírus da covid-19 faz parte do grupo de vírus que têm  RNA como base de sua formação, chamados de retrovírus, assim como o sarampo.

Frase

"Cientistas que testam antivirais podem ver se as alterações dos genes interferem  na ação dos remédios. O mesmo ocorre com vacinas e diagnósticos, que podem ter o efeito modificado devido a essas alterações”

Ester Cerdeira Sabino, pesquisadora da Universidade de São Paulo