O globo, n. 31735, 26/06/2020. País, p. 6

 

STF enviou à 1ª instância casos como o de FIávio

André de Souza

26/06/2020

 

 

Para o ministro Marco Aurélio Mello, decisão do TJ do Rio é “totalmente diversa” às pronunciadas pela Corte: “É o Brasil. E o faz de conta”. Segundo especialistas, mudança não seguiu jurisprudência sobre foro privilegiado

 Ao contrario da decisão de  ontem do Tribunal de Justiça do Rio no caso do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), o Supremo Tribunal Federal (STF) já mandou para a primeira instância ao menos duas ações penais de parlamentares investigados por irregularidades na época em que eram deputados estaduais, em situações análogas à de Flávio. Ambos os casos também envolvem a nomeação de servidores em seus gabinetes e, da mesma forma que o senador, os dois emendaram mandatos no Congresso Nacional.

Ao comentar a decisão do TJ do Rio, o ministro Marco Aurélio afirmou que “não há dúvida” de que ela não segue a doutrina do Supremo. 

—E o Brasil. E o faz de conta. Faz de conta que o Supremo decidiu isso, mas eu entendo de outra forma e aí se toca. Cada cabeça uma sentença disse o ministro.  Casos já julgados mostram definições do ST opostas a tomada pelo TJ do Rio. As decisões são de maio de 2018, pouco depois de o STF ter restringido o alcance do foro privilegiado. Na época, o ministro Dias Toffoli enviou para primeira instância no Paraná uma ação penal do então deputado federal Takayama (PSC-PR), acusa- do de empregar em seu gabinete 12 pessoas que prestavam serviços particulares, entre 1999 e 2003, quando era deputado estadual.

STF “BATEU O MARTELO" 

A Constituição do Paraná estabelece que o foro de deputados estaduais é na segunda instância. Mas como o mandato dele na legislatura local já tinha finalizado, essa regra não foi aplicada por Toffoli e o processo foi remetido para a primeira. Na Justiça Federal do Paraná, a ação acabou arquivada.

Outro ex-deputado estadual com processo remetido para a primeira instância foi Edio Lopes, de Roraima, atualmente deputado federal pelo PL. Em maio de 2018, o ministro Gilmar Mendes mandou para a comarca de Boa Vista a ação penal em que ele era acusado de nome-ar funcionários fantasmas em seu gabinete na Assembleia Legislativa entre 2005 e 2006. Em 2007, ele se tornou deputado federal, cargo para o qual vem se reelegendo.

A Constituição de Roraima também estabelece o julgamento de deputados na se-gunda instância. Mas a ação penal de Édio acabou voltando para o próprio STF por o-tro motivo. Como o processo estava avançado e havia risco de prescrição, a Procuradoria Geral da República recorreu para mantê-lo na Corte e ter um desfecho mais rápido—o STF ainda não julgou o caso. Em maio de 2018, o STF aplicou entendimento que só seria processado no tribunal quem é investigado por fatos relacionados ao mandato cometidos enquanto o parlamentar estiver no cargo. Desde então, a Corte vem mandando para a primeira instância várias investigações, mesmo quando os supostos crimes tenham ocorrido enquanto ocupavam outro cargo com foro privilegiado.

— Em 2018, batemos o martelo. Cessado o mandato ou o cargo que gerava a prerrogativa, vai para a primeira instância. Foi o que decidimos — afirmou ao GLOBO o ministro do STF Marco Aurélio Mello

—Não há a menor dúvida de que a decisão do Tribunal de Justiça é totalmente diversa da decisão de pronunciamentos reiterados do STF. Em agosto de 2018,o ministro Edson Fachin mandou para primeira instância da Justiça Federal um inquérito do então senador Lindbergh Farias (PT-RJ), acusado de irregularidades quando era era prefeito de Nova Iguaçu. Outro caso envolve Aécio Neves (PSDB-MG). Em maio de 2018, quando ainda era sena-dor, o ministro Alexandre de Moraes enviou o inquérito que investigava irregularidades nas obras da Cidade Administrativa, sede do governo, para a justiça criminal estadual de primeira instância.  Para advogados, a decisão que levou a investigação para o Orgão Especial do TJ-RJ pode ter descumprido o parecer dado pelo STF. 

— Flávio não era senador, portanto, a competência originária não é do STF. Como o mandato de deputado estadual dele já está extinto, isso também extingue a competência do órgão especial do TJ afirma Ricardo Prado, presidente do Movimento do Ministério Público Democrático e mestre em Direito.

MP AVALIA RECORRER

O grupo de promotores que investiga o caso vai decidir até segunda-feira se recorre da decisão de ontem. No grupo, há uma preocupação com o atraso que um recurso ao STF daria na conclusão das investigações. Ao mesmo tempo, os promotores veem "uma sinuca de bi-co". Eles também temem que, se o caso permanecer no Órgão Especial, a eventual não observação do entendimento do STF sobre foro especial pode ensejar futuros pedidos de nulidade do processo.