Título: Sete mortes, 11 anos e apenas uma indenização
Autor: Mader, Helena
Fonte: Correio Braziliense, 31/01/2013, Política, p. 3

O jogo de empurra entre a prefeitura de Santa Maria (RS) e o Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul no caso do incêndio da boate Kiss evidencia uma estratégia para escapar da responsabilização pela tragédia. E a preocupação das autoridades municipais e estaduais é justificada: o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que, em caso de omissão na fiscalização de casas noturnas, a responsabilidade de um incêndio fatal é da administração pública. Na tragédia do Canecão Mineiro, que em 2001 matou sete pessoas em Belo Horizonte, o STF determinou que a prefeitura pagasse indenização de 300 salários mínimos a uma das vítimas. Esse caso, que guarda fortes semelhanças com o drama da boate Kiss, servirá como parâmetro para os sobreviventes de Santa Maria e também para os familiares dos 235 jovens mortos.

O ministro do STF Marco Aurélio Mello foi o relator do processo contra a prefeitura de Belo Horizonte. No recurso que chegou à Corte, ele manteve o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e determinou que a administração pública indenizasse a comerciária Gisele Aparecida de Oliveira Silva, hoje com 33 anos. O magistrado acredita que, no caso da tragédia de Santa Maria, também houve omissão das autoridades, o que possibilitará ações de indenização. "O Estado falhou e falhou redondamente", garante o ministro. "O que notamos nesse contexto é uma falha do Estado no exercício do poder de polícia, que é o poder de fiscalizar. Se o Estado fosse mais atuante, quer mediante a atuação de fiscais da prefeitura, quer mediante a atuação do Corpo de Bombeiros, seriam evitados episódios como esse", diz Marco Aurélio Mello.

O caso do Canecão Mineiro é o primeiro processo relativo a incêndios em casas noturnas a ser analisado pelo Supremo. A boate de Belo Horizonte não tinha alvará de funcionamento nem estrutura de prevenção à propagação de chamas. E as semelhanças não param por aí: assim como no drama de Santa Maria, o incêndio começou depois que o integrante de uma banda disparou um sinalizador durante a apresentação. "O Estado é responsável pelo funcionamento e pelo aparelhamento de casas públicas. E o que temos nesse caso de Santa Maria é uma inércia do Estado em suas atribuições. Houve falhas na fiscalização, na verificação do material usado no revestimento do teto, não havia extintores suficientes para fazer cessar o incêndio, portas de emergência e sinalização. Tudo se acumulou resultando nessa tragédia impactante, com a morte de 235 jovens", explicou o ministro Marco Aurélio Mello.

Sequelas O incêndio no Canecão Mineiro matou sete pessoas e deixou 300 feridos. Gisele Aparecida estava na casa noturna na madrugada de 24 de novembro de 2001 e teve graves danos físicos e psicológicos. "Ela ficou com sequelas nas pernas por conta das queimaduras. Mas o pior são os efeitos psicológicos: até hoje ela não entra em ambientes fechados, não vai nem sequer ao cinema. É um dano muito grande", comenta o advogado Antônio Carlos Aguiar, que representou Gisele. A decisão do Supremo saiu em 2009 e já transitou em julgado, mas ainda não houve o pagamento da indenização porque o advogado discute na Justiça o acréscimo de juros. Em valores atuais, a indenização a ser paga pela prefeitura de Belo Horizonte seria de R$ 203 mil, mas Gisele briga para que os valores sejam corrigidos retroativamente ao dia da tragédia.

Para o advogado, que representa outras 30 vítimas do incêndio na boate mineira, a decisão do Supremo certamente servirá de jurisprudência para o caso da boate Kiss. "Um prefeito só tem os bônus do cargo público? Não, ele tem que se responsabilizar pela fiscalização de alvarás e pelo cumprimento das regras. Se o alvará estava vencido, o prefeito, como agente público, tinha o dever de fechar a casa noturna. Se a prefeitura tivesse cumprido seu dever, não teríamos 235 jovens mortos", critica Antônio Carlos Aguiar.

Além de Gisele, Alan Silvério Simões também teve ferimentos graves durante a tragédia e já conquistou uma indenização da prefeitura no valor de R$ 19 mil. Mas o processo dele ainda não transitou em julgado e não há previsão do pagamento. "A fiscalização é dever inalienável da administração pública. Dá-se a responsabilização civil do município pelos danos decorrentes de seus atos omissivos, sempre que houver a constatação de que, não fosse a omissão, o dano não teria ocorrido", diz um trecho da decisão do desembargador Geraldo Augusto, da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no processo relativo ao Canecão Mineiro.

Nessas ações cíveis, Belo Horizonte se esquivou da responsabilidade, a exemplo do que já acontece na administração municipal de Santa Maria. "O acidente que lesionou as vítimas não aconteceu por falta de fiscalização municipal na casa noturna, mas pela conduta dos integrantes da banda de música contratada para o espetáculo, que utilizou apetrechos de pólvora", argumentou a prefeitura mineira.