O globo, n. 31755, 16/07/2020. País, p. 6
Autoridades “recuperam” Lei de Segurança Nacional
Carolina Brígido
Gustavo Maia
16/07/2020
Herança da ditadura, texto foi usado em casos recentes por ministros da Justiça e do STF para coibir manifestações ofensivas
Editada durante a ditadura militar, em 1983, a Lei de Segurança Nacional (LSN) vem sendo usada até hoje por autoridades para enquadrar criminosos e, muitas vezes, inimigos políticos. O alvo mais recente foi o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que associou a imagem de militares a um genocídio na pandemia. O Ministério da Defesa protocolou representação contra ele na ProcuradoriaGeral da República (PGR) recorrendo à LSN. Durante os governos militares, a lei foi muitas vezes usadas para coibir manifestações da esquerda contrárias à ditadura.
A norma segue em vigor e não há irregularidade em usá-la — ainda que ela guarde a simbologia de uma época de violação de direitos individuais.
O professor de Direito Michael Mohallem, da FGV do Rio, lembra que a lei protege valores importantes, como a própria democracia. No entanto, como ela tem trechos vagos, dá margem para que autoridades usem a norma de forma equivocada. Entre os artigos pouco precisos está o 18, que considera crime “tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados”. Ou o 23, que coíbe a incitação “à subversão da ordem política ou social”.
—É uma lei que tem sua importância. Mas, pelo fato de ter sido criada no fim do período militar, ela costuma ser lembrada como uma lei para ser refeita. A discussão não é abolir a lei, mas modernizar. Alguns artigos são subjetivos e permitem aplicação abusiva. Ao mesmo tempo, é uma lei válida, que protege valores que nenhuma outra lei protege —diz o professor.
Na avaliação de um ministro do STF, que falou ao GLOBO reservadamente, a manifestação de Gilmar Mendes não deveria ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional. Ele considera que a fala foi ofensiva, mas a União deveria ter entrado com uma ação civil pedindo indenização por danos morais.
O caso de Gilmar não é o único. Recentemente, o ministro da Justiça, André Mendonça, requisitou a abertura de dois inquéritos contra jornalistas com base na lei de 1983. O último pedido, da semana passada, teve como base o artigo “Por que torço para que Bolsonaro morra”, de Hélio Schwartsman, publicado no jornal “Folha de S.Paulo”. Mendonça justificou o requerimento citando o artigo 26 da lei, que prevê pena de um a quatro anos de reclusão para quem “caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado, o da Câmara ou o do STF, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. Em 15 de junho, ele havia solicitado à PF e à PGR a abertura de investigação sobre a publicação de uma charge do cartunista Aroeira, que liga a suástica nazista a Bolsonaro.
O antecessor de Medonça, Sergio Moro, pediu em fevereiro à PF a abertura de um inquérito com base na LSN, mas para investigar o expresidente Lula. A acusação ocorreu a partir de declaração do petista sugerindo que
Bolsonaro é um “miliciano”. Lula chegou a prestar depoimento a um delegado da PF, que atestou em relatório à Justiça “a inexistência de qualquer conduta que configure crime previsto na LSN”.
Não vieram só do governo iniciativas recentes de lançar mão da LSN. Em abril do ano passado, o ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news no STF, determinou buscas e apreensões contra várias pessoas por ataques à Corte na internet. No despacho, ele sustentou que havia indícios do cometimento de crimes previstos na LSN.