O globo, n. 31758, 19/07/2020. País, p. 4
Gasto inflado
Thiago Herdy
19/07/2020
CGU projeta em R$ 1,9 bilhão sobrepreço de compras para combate ao coronavírus
Análise da Controladoria-Geral da União (CGU) sobre 19,8 mil contratações realizadas no âmbito do combate à Covid-19 por estados, capitais e outras grandes cidades projetou em R$ 1,9 bilhão o sobrepreço aplicado em compras desde o início da pandemia no Brasil, em março. Somados, os contratos chegam a R$ 13 bilhões.
Foi considerada a aquisição de itens como respiradores, máscaras, aventais, medicamentos e equipamentos, além de custos com gestão de hospitais de campanha em 357 municípios e entes federados.
O aumento da demanda mundial por itens e a urgência de aquisição são algumas das causas da ocorrência de preços mais altos. Mas há também indícios de conluio e má-fé entre empresas e agentes públicos. Algumas compras relatadas na análise da CGU foram interrompidas depois de se tornarem objeto de ações da polícia e do Ministério Público. Mesmo assim, há aquisições ainda ativas que apresentam razões para um olhar mais cuidadoso dos órgãos de controle: dos 30 maiores fornecedores (acima de R$ 50 milhões), que, juntos, totalizam R$ 4,4 bilhões em compras, 12 têm contrato social inferior a 10% da contratação assinada ou são empresas de pequeno porte, segundo anotação da própria CGU.
Entre os 30 contratos de maior valor na base de dados, oito têm o governo do Rio ou municípios do estado como parte, e seus signatários vêm sendo alvos de operações do Ministério Público, da Polícia Civil e do Tribunal de Contas, que podem levar ao impeachment do governador Wilson Witzel (PSC). Somados, chegam a quase R$ 1 bilhão. Já foram constatados episódios de sobrepreço, venda de leito de UTI fantasma em hospital privado e incapacidade de prestar serviços e entregar respiradores, entre outros problemas. O governo diz que vem revisando contratos suspeitos.
Com R$ 174 milhões acordados para fornecimento de remédios, a Carioca Medicamentos, por exemplo, teve contratos suspensos depois que o Tribunal de Contas identificou que o governo sequer consultou preços de referência no Sistema Integrado de Gestão de Aquisições do Estado do Rio, em tabelas da Anvisa ou contratações vigentes similares. Resultado: estava prestes a pagar R$ 50 milhões por luvas cirúrgicas a R$ 0,55 cada, valor 40% maior que a mediana constatada no país, de acordo com a CGU.
IMPORTADORA DE JOIAS
Outra empresa carioca na mira é a Fast Rio Comércio, firma de pequeno porte que prevê faturamento anual de, no máximo, R$ 4,8 milhões, mas com registro de fornecimento de 600 mil testes de Covid-19 ao governo estadual, ao custo de R$ 77,3 milhões. O preço unitário do item é de R$ 128,8 enquanto a mediana calculada pela CGU é R$ 117.
O dono da empresa integra o quadro societário de um grupo de companhias suspeitas de terem proprietário oculto, no caso, o capitão da PM Victor Zeitune, que também é dono de hospitais da Zona Norte carioca. O relacionamento do empresário com as firmas foi denunciado por uma ex-funcionária em processo trabalhista contra uma das empresas, ocasião em que ele negou a acusação. Procuradas por e-mail, as empresas não se manifestaram.
No Pará, o governo estadual encomendou à microempresa Kaizen Comércio o fornecimento de cestas básicas para estudantes ao custo de R$ 74 milhões. A compra foi cancelada quando verificou-se que a firma funcionava em imóvel modesto e não tinha capacidade ou estrutura de logística para distribuir o material às 144 cidades do estado. Os representantes da Kaizen não foram encontrados.
Os dois maiores contratos do painel da CGU foram cancelados — o primeiro previa a compra de 15 mil respiradores ao custo de R$ 1,03 bilhão, mas não seguiu por decisão do fornecedor; o segundo, encerrado após o Tribunal de Contas da União (TCU) questionar a capacidade de entrega da contratada, previa 80 milhões de aventais, ao custo de R$ 912 milhões. O maior contrato em vigor no país, portanto, é o terceiro do ranking e foi celebrado com uma importadora de joias que mudou de ramo para fornecer 240 milhões de máscaras ao governo federal, ao custo de quase R$ 700 milhões. A cláusula obrigou o governo federal a gastar mais R$ 80 milhões com fretamento de aeronaves para trazer o material, que ainda assim apresentou preço unitário abaixo da mediana constatada no país. Comandada pelo empresário Freddy Rabbat, a empresa fez acordo com uma firma de HongKong para fornecer os itens, exigindo em contrato que eles fossem buscados na China. Procurado, Rabbat não quis se manifestar.
Para chegar ao cálculo do sobrepreço, a CGU considerou os valores acima do que poderia ser considerado o preço mediano dos produtos, isto é, excluindo-se do cálculo os gastos mais altos e mais baixos e obtendo-se, desta forma, o preço típico de um produto em tempos de pandemia.
O diretor de Auditoria da CGU, José Paulo Barbieri, explica que o valor de R$ 1,9 bilhão não configura necessariamente um prejuízo efetivo, mas uma projeção que mostra “como várias compras sem observância de referência de mercado podem se transformar em exemplos de má gestão”:
— Se (as contratações) tivessem sido melhor trabalhadas, teríamos potencial economia —diz.
FALTA DE COORDENAÇÃO
O órgão decidiu, neste mês, tornar público o levantamento em um painel virtual, que tem o propósito de ser referência a gestores.
— Alguma compra urgente pode ter sido feita acima da mediana para salvar vidas, o que seria justificável para locais distantes, exemplos de frete elevado. A partir do momento em que há uma referência de preços, gestores têm a oportunidade de atuar dentro de alguns limites —afirma Barbieri.
Especialistas vêm criticando a falta de coordenação na pasta da Saúde, que teve três ministros no curto período da pandemia e sucessivas crises. Na visão deles, compras articuladas nacionalmente poderiam ter evitado a corrida de estados e municípios a insumos em condições desfavoráveis.