Título: O risco da desatenção
Autor: Bernardes, Adriana
Fonte: Correio Braziliense, 04/02/2013, Cidades, p. 17

Levantamento feito pelo Detran a pedido do Correio mostra que 37,8% dos motoristas multados por excesso de velocidade dirigiam a no máximo 5% acima do limite da via. Segundo especialistas, descuido é suficiente para provocar acidentes

Os motoristas brasilienses ignoraram a velocidade da via e as placas com alertas de fiscalização mais de 1 milhão de vezes no ano passado. Em 83,2% dos casos, eles dirigiam a até 20% acima da velocidade permitida na via. Ou seja, em uma pista de 80km/h, como o Eixão, por exemplo, o carro estava a no máximo 96km/h. O detalhamento dos flagrantes, feito a pedido do Correio, revela ainda que uma grande parte dos infratores é vítima da desatenção: 37,89% dos condutores acabam punidos por excederem em apenas 5% o limite fixado para via.

Dos 2,3 milhões de flagrantes realizados nos dois últimos anos, 895.666 estão na chamada faixa do “descuido”. Significa dizer que, em uma via onde o limite é de 60km/h, o radar fotografou esses veículos a no máximo 63km/h (velocidade real, já descontada a margem de erro do equipamento eletrônico). Na outra ponta, estão os motoristas que excedem em muito o limite da via. No ano passado, 4% dos condutores multados ultrapassaram o limite de velocidade em mais de 50%.

O cinegrafista Daniel Alexandre Lopes Santos, 28 anos, não escapou da vigilância e foi multado por trafegar acima do limite regulamentado. Ele está entre a parcela de condutores que passaram pelos equipamentos com o velocímetro marcando apenas 5% do permitido. “Foi falta de atenção. Por sorte não machuquei ninguém. Mas, do mesmo jeito que a pessoa não presta atenção na fiscalização, pode não ver um pedestre e isso acabar em morte”, admite. Apesar de assumir o erro, Daniel critica os órgãos de trânsito por investirem pouco em educação para o trânsito. “Se os motoristas fossem mais educadores, obedeceriam às leis, e isso seria bom para todo mundo. Ninguém pagaria multa e haveria menos mortes”, afirma.

Apesar do alto índice de multas aplicadas por descuido, especialistas em trânsito não concordam que exista uma indústria de multas. Para eles, a fiscalização é um dos tripés indispensáveis para evitar as tragédias, e os equipamentos eletrônicos são um meio eficiente de conter o comportamento do infrator. Coordenadora do Núcleo de Psicologia do Trânsito da Universidade Federal do Paraná, Iara Thielen rebate os argumentos de indústria da multa dentro dos órgãos executivos de trânsito.

“Qualquer indústria precisa de matéria prima. O insumo para uma possível indústria da multa é a infração de trânsito. O que existe é a indústria do infrator de trânsito, abusando do direito de ir e vir. Sou defensora dos radares. O que deveria guiar o comportamento da pessoa não é a fiscalização, e sim o limite da via. Mas boa parte não está nem aí para isso”, observa.

O diretor de Policiamento e Fiscalização de Trânsito, Nelson Leite, alerta que, extrapolar um pouquinho o limite por falta de atenção não pode ser usado como desculpa. “É uma distração que resulta em multa, mas pode acabar em um atropelamento com ferido ou até com morte. A condução do veículo exige 100% de atenção. Isso evita multas e mortes”, alerta. Ainda de acordo com Leite, os equipamentos eletrônicos são bastante eficientes na redução do número de tragédias. Ele cita como exemplo o aumento dos pardais no Eixão e na Estrada Parque Taguatinga (EPTG) no ano passado. “Depois disso, os indíces de acidente e mortes nesses locais reduziram drasticamente”, afirma.

Ano passado, o gerente de recursos humanos Júlio Sérgio da Cunha, 41 anos, pagou R$ 800 em multas, boa parte delas por excesso de velocidade. “Algumas eu mereci, outras foram injustas. Em muitos pontos, o governo mudou o limite repentinamente. Por exemplo, na BR-020 era 80km/h, mas agora caiu para 40km/h na altura do condomínio Mestre D’Armas. Sem falar que tem pelo menos três radares muito próximos um do outro. É exagero.”

Critérios Antes de instalar os equipamentos eletrônicos, os órgãos de trânsito são obrigados por lei a fazer um estudo detalhado. Superintendente de Trânsito em exercício do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), Carlos Pena explica que são levados em consideração o volume de carros, a quantidade de acidentes, a velocidade da pista e o comportamento dos motoristas. “No Eixão, por exemplo, percebemos que o condutor freava no pardal, acelerava e, lá na frente, freava novamente. Aumentamos a quantidade de equipamentos de modo que, agora, é mais vantagem seguir na velocidade regulamentada. A quantidade de acidentes reduziu consideravelmente no local”, diz. Para os que falam em indústria da multa, Pena lembra que, se todos observassem as leis de trânsito, não haveria razões para multar.

Professora do Departamento de Engenharia de Transporte e Geotecnia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Heloisa Maria Barbosa afirma que uma parcela dos motoristas adota um comportamento nas vias que revela total falta de compromisso com as regras de trânsito, talvez motivado pela impunidade e falta de fiscalização ostensiva. “O excesso de velocidade pode causar problemas de pequeno vulto a tragédias. Enquanto o motorista não se conscientizar de que a sua segurança é resultado da sua atitude, não vamos mudar esse quadro. A redução da acidentalidade só é possível mudando o comportamento do motorista para que ele atue de forma mais segura.”

Entre os que discordam da fiscalização eletrônica está o analista de negócios Lêucio José Batista, 35 anos, que no ano passado pagou duas multas por excesso de velocidade. “O pardal era de 60km/h eu passei a 72km/h. A gente fica parado no engarrafamento, se atrasa e acaba excedendo. Em Brasília, cada esquina tem um pardal. É o famoso caça-níquel”, critica. Lêucio acusa o governo de investir em fiscalização em vez de aplicar o dinheiro em educação.

Palavra de especialista

Educação é o caminho Historicamente o ser humano sempre foi incentivado a ir além: andar, correr, inventou a roda e, depois disso, enlouqueceu com o poder da velocidade. Os benefícios da velocidade dependem da cultura de cada país. No Brasil, está muito associada a resolver problemas, principalmente ligados ao dinheiro. É preciso passar na frente, chegar primeiro, competir. Mas é preciso desenvolver na espécie humana o sentimento de cooperação, de percepção da cidade, de solidariedade, de tolerância, de inteligência espacial, de domínio dos trajetos, de percepção dos problemas advindos do excesso de velocidade. E, neste ponto, entra a engenharia de trânsito. É ela quem deveria pensar nisso, mas hoje trabalha isolada. Esse setor precisa estar ligado a áreas de estruturação da cidade e de educação do ser humano.

Um grande problema hoje é a formação do condutor, que está nas mãos de pessoas sem preparo, sem conhecimento de psicologia e de pedagogia. Além disso, a educação deve ser continuada ao longo da vida. Ter início nas séries iniciais até a universidade.

A criança é um fator de reeducação dos pais. Já vi um punhado de gente deixar de furar o sinal porque o filho cobra.

Associadas a isso, é preciso ter campanhas. Elas podem mudar o comportamento do condutor. A visão de trânsito pode ser modificada. Quando o carro foi criado, ninguém pensava no trauma do acidente. Mas é sabido que, desde que o homem começou a correr, de cavalo, de carroça ou charrete, muita gente morreu.”

Gildo Scalco, professor aposentadode didática da Faculdade de Educação da UFMG