Correio braziliense, n. 20903, 16/08/2020. Cidades, p. 20-21

 

Voluntários da esperança

Alan Rios 

Samara Schwingel

16/08/2020

 

 

Tentar fazer mais do que o máximo possível. Se esforçar mesmo na exaustão. Esses foram os sentimentos que moveram 10 profissionais da saúde do Distrito Federal a participar de um projeto de importância mundial. Médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas que estão na linha de frente do combate ao novo coronavírus se voluntariaram para participar dos testes da vacina CoronaVac, contra a covid-19, mesmo sabendo dos riscos de um produto ainda em experimentação e abrindo mão das poucas horas disponíveis na semana entre as jornadas de trabalho. Por trás da escolha de se submeter a uma bateria de exames e ensaios, estão histórias de pessoas que encontraram na área da saúde um propósito de vida essencial em tempos de pandemia, o prazer por cuidar e de se doar pela vida do outro.

Uma dessas histórias é de Gabriel Ravazzi, 31 anos. Esse nome está em jalecos que ele usa nas clínicas, no Hospital de Base e no Hospital Universitário de Brasília (HUB), além de constar no topo da lista de voluntários do teste da CoronaVac. Mas tudo começou em campos de futebol, onde o então garoto do ensino médio atuava no time juvenil do Goiás. Ele lembra que, naquela época, “era o sonho de todo brasileiro ser jogador”, mas que tinha como meta mais sólida seguir o caminho do pai, como engenheiro. Uma partida que ele assistiu do Campeonato Brasileiro de 2004, entre São Caetano e São Paulo, porém, direcionou Gabriel para uma área diferente. Naquele jogo, Paulo Sérgio Oliveira, o zagueiro Serginho, teve uma parada cardíaca e morreu em campo, cena que marcou o país e motivou o garoto do Goiás a marcar exames médicos.

“Na conversa com o cardiologista, citei que gostava de biologia, sempre achei medicina legal, mas disse que achava não ter capacidade. Ele falou que o esforço para entrar no curso era grande, mas que quem tinha vontade de ajudar as pessoas teria capacidade”, relembra Gabriel. Se passaram 16 anos daquela decisão. Hoje, o médico acumula experiências em Goiás, São Paulo e no Distrito Federal, que o aproximaram mais do atendimento clínico. “Cheguei a querer atuar na área cirúrgica, mas, trabalhando em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do município de Goianira (GO), percebi o quão gratificante era poder dar atenção a pessoas simples, que muitas vezes só queriam ser bem-atendidos, poder conversar. Receber cuidados que, infelizmente, hoje, nós não vemos em muitos profissionais”, avalia.

Do conforto à luta

No começo de 2020, Gabriel estava trabalhando no interior de São Paulo como médico gastroenterologista, mas acabou recebendo um convite para atuar em uma clínica do DF, em março. “Assim que cheguei, a pandemia estava ganhando força e os atendimentos de lá foram suspensos. Eu via a situação ficando mais crítica a cada notícia e aquilo começou a me angustiar, porque eu era médico, tinha me preparado para estar naquela linha de frente, poderia tentar mudar aquela situação, mas estava em casa sentado no sofá”, conta. Os pais até tentaram convencer o jovem a se manter seguro, fora do combate ao vírus e aguardando a situação se normalizar para atender na clínica. “Mas eu não ia me acovardar”.

Entre o fim de maio e o começo de junho, Gabriel se inscreveu para processos de seleção e foi chamado para trabalhar no HUB e no Hospital de Base. Desde então, a rotina dos atendimentos tem exigido uma doação quase completa. “Em uma semana normal, de domingo a domingo, tenho somente a manhã de quarta-feira livre. O resto dos dias e horários estou sempre entre um e outro serviço. Geralmente começo às 7h, paro às 13h, almoço por onde estou, quando possível, vou para o segundo turno e só volto para casa 20h, quando não tenho plantão noturno. Quando tenho, saio de um hospital pela manhã já indo para outro”, detalha. O médico define todo esse esforço como desgastante, fisicamente e psicologicamente, mas gratificante.

Nos hospitais, Gabriel se coloca no lugar dos pacientes que estão lutando contra a covid-19 e pensa na família dessas pessoas, que também encara o sofrimento, mas a distância. Nos boletins que prepara para os parentes, além dos termos científicos do quadro atual, ele e os colegas da equipe médica também fazem questão de escrever relatos como: “Estamos cuidando bem do seu pai para que ele possa voltar para casa logo”. “Tentamos acalentar um pouco e passar essa segurança de que aquela pessoa está sendo bem cuidada, porque ela é a mãe de alguém, o pai, o filho. Não um número. E o familiar que está em casa dificilmente consegue fugir dos pensamentos negativos, por acompanhar todas as notícias de mortes da pandemia”, diz.

Quando Gabriel aceitou participar do teste da vacina, o grupo de pesquisa do HUB planejou o cronograma dos testes e entrou em contato com ele informando a data que havia sido escolhida para recebê-lo, 5 de agosto. “Quarta-feira pela manhã. O único dia e horário que era possível para mim. Ou seja, foi perfeito”, celebra. Quando chegou ao ambulatório para receber a imunização, o médico conta que começou a perceber a importância daquele projeto, que significa uma esperança mundial. “Eu me toquei que aquele era o primeiro passo de algo que o mundo inteiro estava esperando. O fato de ter sido escolhido para participar da pesquisa é como uma recompensa. Porque enfrento dias desgastantes e um sentimento de impotência, mas o que tenho hoje é a sensação de que estou usando meu chamado para ajudar a salvar vidas. Então, me sinto realizado”, afirma.

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Apoio emergencial 

16/08/2020

 

 

Mariana Rodrigues da Silva, 29, é enfermeira e iniciou a trajetória em Belém (PA). A paraense terminou o ensino médio sem ter certeza da profissão que queria seguir. Prestou vestibular, inscreveu-se em diversos cursos e acabou passando para enfermagem. No início, ela não sabia muito bem qual era o papel de uma enfermeira, mas, no decorrer da graduação, se apaixonou pela profissão. “Assim que comecei o primeiro semestre, consegui me identificar com as matérias e o dia a dia da enfermagem. Não larguei nunca mais”, diz. Em 2011, se formou pela Universidade da Amazônia (Unama). Cinco anos depois, veio para Brasília visitar a irmã que morava na capital, passou em um processo seletivo para ministrar aulas em uma faculdade particular e resolveu ficar.

Desde então, atua como professora em diversas instituições de ensino na capital federal. Moradora do Cruzeiro Novo, ela foi chamada como parte do apoio emergencial para auxiliar na ala de infectados pelo coronavírus no HUB. Ela conta que a família ficou apreensiva quando recebeu a notícia do novo trabalho. “Moro com minha mãe de 61 anos, meu filho de 6 e minha filha de 15. Eles não me apoiaram muito quando disse que ia atender pacientes com covid-19”, explica. O filho chegou a pedir para a mãe não aceitar o emprego. “Ele ficou repetindo que não era para eu ir, que era perigoso”, afirma. Segundo Mariana, a mãe também ficou extremamente preocupada com a notícia. “Ela levou um susto, demorou para acreditar e se incomodou com a ideia”, acrescenta.

Ela acredita que a inquietação dos familiares é resultado do número de profissionais de saúde que foram infectados pela doença. “Todo dia ficamos sabendo de mais uma pessoa do meio que testou positivo. Por isso, entendo a preocupação deles”, considera.  Mesmo com os protestos, a enfermeira aceitou o chamado do HUB. “Fui convocada pelo edital emergencial da unidade em abril. Mesmo com receio, aceitei, pois acredito que é meu papel oferecer meus conhecimentos e ajudar os outros”, considera. Ela aposta na positividade para auxiliar a família a lidar com o momento. “Tento sempre falar que vai dar tudo certo. Esse lado positivo acaba me ajudando a passar por esse período. Isso, e seguir as medidas de segurança e higienização”, declara.

Mariana relata que a rotina de toda a família se alterou desde que ela começou a trabalhar no atendimento a pessoas com covid-19. A enfermeira adotou medidas de segurança e higienização dentro de casa. “Como estou mais exposta ao vírus, decidi impor isolamento social dentro de casa. A última vez que abracei minha mãe, por exemplo, foi no início do ano. Mesmo morando com ela, evito o contato”, diz. Além disso, tenta não transitar por muitos cômodos. “Fico grande parte do tempo no quarto. Saio apenas para coisas extremamente necessárias”, ressalta.

Mesmo sendo uma medida difícil, ela acredita que é necessária e, por isso, segue uma rotina extremamente regrada. “Estamos lidando com uma doença pouco conhecida, temos que estar atentos a todo momento”, afirma. “Sempre que saio, principalmente para o trabalho, evito levar utensílios pessoais. Vou só com a roupa do corpo e chave do carro. Chegando ao hospital, faço a paramentação. Quando saio, tomo cuidado com ao retirar a roupa de proteção e tomo dois banhos”, continua. Tudo para não contaminar a si mesma ou a família.