Título: O alto custo da imprudência
Autor: Mader, Helena; Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 02/02/2013, Brasil, p. 8

Só no ano passado, o Sistema Único de Saúde hospitalizou 7.254 vítimas de incêndio e gastou R$ 19 milhões. Especialistas mostram que o tratamento e o acompanhamento desses pacientes é caro e que a maioria das situações poderia ser evitada

Uma semana após a tragédia da boate Kiss, 119 pacientes continuam lutando pela vida em hospitais de cinco cidades gaúchas. O drama desses sobreviventes mostrou ao Brasil a realidade das equipes que, diariamente, salvam a vida de queimados na rede pública. No ano passado, 7.254 pessoas foram internadas após sofrerem com a exposição à fumaça ou às chamas. Nos últimos cinco anos, o número de hospitalizados com sequelas decorrentes de incêndios chega a 42.461. Os dados fazem parte de um levantamento realizado pelo Correio no Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus).

Além dos danos respiratórios, problema mais registrado entre os jovens hospitalizados no Rio Grande do Sul, as vítimas enfrentam uma longa recuperação, que inclui enxertos de pele, cirurgias reparadoras e combate às frequentes infecções. A lista extensa de procedimentos e medicamentos necessários à sobrevivência tem um custo alto. As internações das vítimas de incêndios custaram R$ 19 milhões no ano passado. Desde 2008, foram gastos R$ 92,9 milhões com essas hospitalizações.

O médico David Gomes, chefe da Unidade de Queimaduras do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), considera o número de internados alto. “A gente gostaria que fosse zero, até porque estamos falando de acidentes, de eventos evitáveis”, afirma. De acordo com Gomes, apesar dos avanços econômicos ocorridos no país nos últimos anos, a mentalidade de prevenção não caminhou no mesmo ritmo. “Infelizmente, a condição sociocultural em geral ainda é baixa, o que contribui para a ocorrência dos casos.”

A presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras, Maria Cristina Serra, explica que, nos casos graves, a recuperação demanda uma série de cuidados e uma equipe especializada. “O paciente com problema pulmonar pode não ter sofrido queimadura, como muitos de Santa Maria. Mas, normalmente, precisamos de pneumologistas, intensivistas, anestesistas e cirurgiões plásticos. Sem contar a reabilitação, que envolve psicólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional. É um paciente caríssimo para o governo e para a sociedade”, afirma Maria Cristina.

David Gomes explica que sair do estado crítico pode ser muito demorado. “O quadro piora se houver problemas associados. A idade, o estilo de vida, doenças preexistentes, tudo isso vai determinar o tempo e a complexidade do tratamento”, afirma o chefe da Unidade do Hospital das Clínicas. “São pacientes que precisam de cirurgias sucessivas. Depois de fazer um enxerto com pele de cadáver, que é uma condição provisória para evitar as infecções, precisaremos cobrir com a pele da própria pessoa. Esse processo não é rápido.”

Prevenção Maria Cristina insiste na importância da prevenção, focando especialmente a situação das crianças. “Há muitas vítimas de cerca de um ano, que começam a andar sem ter noção dos perigos e acabam se ferindo em situações extremamente fáceis de se evitar. É a panela no fogão, velas, produtos inflamáveis”, destaca Cristina, que é pediatra. Entre os 7.254 pacientes internados no ano passado em decorrência de incêndios, a maioria é de crianças. As faixas etárias com maior número de internações é a de 1 a 4 anos e de 5 a 9 anos: 1.413 pacientes estavam nesse intervalo de idade.

Em Pernambuco, a Unidade de Queimados do Hospital da Restauração é a única especializada da região e recebe pacientes de estados como Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte. Ao todo, são 40 leitos, que atendem 250 novos pacientes por mês. Há três décadas, o médico Marcos Barreto, hoje coordenador da unidade, trabalha no local. Ele conhece como ninguém as dores físicas e psicológicas decorrentes de queimaduras.

O especialista relata o dia a dia da unidade e conta que a demanda não para de crescer. “Fazemos cerca de 400 cirurgias reparadoras por ano, além de 6 mil procedimentos com anestesia geral. São pacientes de alta complexidade, que demandam uma terapia intensiva. E os gastos são muito altos”, explica Marcos. “Tenho quase 100 funcionários, além de um bloco cirúrgico próprio. É como um dominó, além das queimaduras na pele, esses pacientes têm alterações renais, cardiovasculares e processos infecciosos. O importante é manter o doente grave vivo”, acrescenta Barreto. Ele se solidariza com os pacientes internados no Sul e com os médicos que tentam salvar a vida das vítimas da boate Kiss. “Tenho pena dos pacientes e também das equipes, deve ser uma maluquice tratar esse número enorme de pessoas ao mesmo tempo.”

119 feridos quantidade de pessoas internadas em hospitais do estado até o fechamento desta edição