O globo, n. 31758, 19/07/2020. Sociedade, p. 14
Os piores da pandemia
Rafael Garcia
19/07/2020
Os Estados Unidos e o Brasil possuem muitas diferenças estruturais em seus sistemas de saúde, mas há razões comuns pelas quais abrigam as duas maiores epidemias de Covid-19 do mundo. Sob coordenação federal confusa, brasileiros e americanos aderiram mal às medidas de distanciamento social, e os números da doença custam a cair nos dois países. Na Europa, Itália, França e Espanha tiveram explosões de casos, mas conseguiram implementar, em meio ao pânico, políticas consistentes de isolamento. No índice de mobilidade de smartphones rastreados pelo Google, esses três países atingiram quedas de 80% em alguns quesitos (como presença no varejo ou em terminais viários), enquanto nos EUA e no Brasil os números variaram de 50% a 60%, com perda subsequente de adesão. Enquanto europeus viram, na sequência, seus registros diários de casos e mortes caírem, Brasil e EUA ainda patinam na resposta à pandemia. Os dois países não poderiam ser mais diferentes em estrutura sanitária. Um é uma nação em desenvolvimento, mas com um Sistema Único de Saúde (SUS) acima da média para seu IDH. Outro não possui nenhuma articulação nacional de serviços médicos, mas tem recursos humanos de ponta e alta capacidade de investimento. Segundo Deisy Ventura, sanitarista da Universidade de São Paulo (USP), as distinções fizeram menos diferença do que se esperava na crise da Covid-19.
— Aprendemos com essa pandemia que a política supera as condições estruturais da saúde, para o bem e para o mal — diz.
— Em dois países continentais, com estruturas federativas complexas, a coordenação no plano nacional era crucial, mas não existiu. Além disso, atitudes de negacionismo causaram problemas na comunicação, essencial no controle de epidemia, porque ela depende de comportamentos individuais e comunitários.
NEGACIONISMO
A negação à qual Deisy se refere está em uma farta coleção de declarações dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro minimizando a seriedade da pandemia. Em estados onde a adesão a medidas de distanciamento dependeu mais de persuasão política do que de leis, é possível que palavras tenham tido efeito deletério. Os cenários nacionais dos dois países, claro, têm embutidas diferenças internas. Nova York e o Rio de Janeiro estão agora melhor do que esavam em maio, mas o que se ganhou a duras custas nesses locais não afetou o aumento dos casos e mortes em outros. Califórnia e Minas Gerais, por exemplo, estão em momento de elevação dos números. E grandes centros urbanos que já estão reabrindo suas economias ainda não tiveram tempo de avaliar o efeito do relaxamento. Navegando estado por estado, dizem especialistas, é difícil explicar as diferenças na dinâmica da Covid-19.
— Não existe ainda uma única explicação lógica para tudo isso, e existem realidades diferentes — afirma Mauro Schechter, da UFRJ.
— Aparentemente, em todos os lugares, assim que a Covid-19 entra, ocorre uma epidemia grande. Mas depois, se há uma segunda onda, se não há e como ela é, ninguém tem certeza. O que se sabe é que a única maneira comprovada de evitar o espalhamento é pelo isolamento social — complementa o professor de infectologia.
Não faltam teorias para tentar explicar, por exemplo, o que ocorreu na Califórnia.
Um dos primeiros a adotarem medidas de distanciamento social na epidemia dos EUA, o estado mais populoso do país reabriu de forma cautelosa em maio, com a epidemia aparentemente controlada, mas casos passaram a subir. Autoridades locais estão preocupadas com migração e com a dificuldade da população trabalhadora mais pobre (sobretudo latina) em seguir políticas de proteção individual e home office. Mas há um sinal claro nos dados do Google de que, em muitos lugares, incluindo os de lazer, o trânsito de pessoas aumentou demais. Parte da população não levou recomendações do estado a sério. Pode-se questionar se os dados do Google apontam a tendência correta, mas a empresa usa os mesmos critérios de rastreamento para qualquer lugar do mundo.
PILOTANDO ÀS CEGAS
O mesmo não se pode dizer, porém, dos dados de mortes e casos de Covid-19, já que os Estados Unidos testam mais do que o Brasil.
— O que complica a comparação é que v ários lugares nos EUA têm vigilância epidemiológica muito bem feita, e aqui no Brasil nós ainda estamos pilotando às cegas —diz Schechter.
Mas mesmo os recursos de inteligência, uma vantagem clara dos americanos sobre os brasileiros, estão sendo postos à prova. A exemplo do Palácio do Planalto, que ensaiou interferir nas estatísticas da epidemia do Ministério da Saúde, a Casa Branca requer agora que o números recolhidos pelos CDCs (Centros de Controle de Doenças) sejam depositados em um banco de dados fechado. Olhando superficialmente para os números, a semelhança de dinâmica da epidemia entre Brasil e Estados Unidos também se manifesta na letalidade: apesar de o número de casos registrados ainda estar subindo, o registro de mortes por dia segue num platô relativamente estável. Há sinais, porém, de que as razões por trás desse fenômeno podem ser diferentes em cada país. Nos EUA, há indício de que essa redução de mortalidade pode ser um efeito real, fruto do avanço da medicina. Um levantamento feito pela Associação de Anestesistas cobrindo hospitais americanos, europeus e chineses indica que a mortalidade por Covid-19 nas unidades de terapia intensiva caiu quase um terço (de 60% no fim de março para 42% no fim de maio). Essa melhora de eficiência medida dentro das UTIs provavelmente se refletiu na letalidade bruta (número de mortes registradas dividido pelo número de casos registrados), que caiu de 5,9% para 3,9% nos EUA do fim de maio até aqui.
— É a curva de aprendizado. No início se intubava todo mundo precocemente, por exemplo, agora a indicação é mais tardia. Os médicos sabem lidar melhor com a oxigenação. Hoje sabem que todos tendem a ter piora clínica do sexto ao oitavo dia de doença, e já se preparam para tomar atitude — diz Schechter. Segundo o infectologista, as centenas de artigos de literatura médica que já foram produzidos também já estão se fazendo valer, com indicações mais claras de quais casos requerem uso de anticoagulantes ou corticoides, e em quais casos são contraindicados.
Não há um estudo abrangente ainda, porém, para mostrar o quanto dessa melhora no atendimento se refletiu no cenário brasileiro, onde a administração de drogas como cloroquina e ivermectina segue encontrando defensores, mesmo sem comprovação de eficácia.
SUBNOTIFICAÇÃO
O Brasil possui um outro fator explicativo, porém, que é o abismo de subnotificação de casos que ocorreu no primeiro trimestre. Do fim de abril para cá, a letalidade bruta da Covid-19 caiu de 7% para 3,8%, mas parte do fenômeno se deve ao registro de mais casos, não apenas a melhora na clínica. Essa é a interpretação do virologista Átila Iamarino, que analisa números da pandemia em seu canal de Youtube. — No Brasil, o aumento consistente no número de casos acompanhou uma melhora relativa na capacidade de testagem —afirma. Em estados como Amazonas, Pará e o próprio Rio, a quantidade de diagnósticos perdidos até abril foi provavelmente muito grande. — Por isso vimos a letalidade cair agora, em um descompasso com o número de casos aqui no Brasil — explicou o virologista. Independentemente das razões para a queda da letalidade, é preciso observar mais a tendência, dizem especialistas.
Como as medidas de retomada de atividades têm menos de um mês, diz Iamarino, ainda não houve tempo para que uma eventual segunda onda precipitada pela reabertura tenha atingido as estatísticas da doença, sobretudo as de morte, que demoram mais a flexionar.