O globo, n. 31754, 15/07/2020. Sociedade, p. 21
Dois meses sem comando na saude
André de Souza
Paula Ferreira
15/07/2020
No pior momento da pandemia, ministério acéfalo e militarizado falha na resposta
“O Brasil vive ao mesmo tempo uma pandemia e um pandemônio.” É assim que o cientista Miguel Nicolelis se refere aos dois meses completados hoje sem um titular à frente do Ministério da Saúde. E, como ele lembra, “o pandemônio também mata.”
Desde a saída do ex-ministro Nelson Teich,em 15 de maio, a pasta segue sob comando interino e com uma gestão militar que mudou protocolos e rotinas e enfrenta dificuldades para cumprir algumas promessas, como a distribuição de 46 milhões de testes.
Com a chegada dos militares na pasta, representados no posto máximo pelo ministro interino, Eduardo Pazuello, o ministério mergulhou em um clima interno de desconfiança. Na visão de funcionários, cientistas e gestores públicos, a pasta está à deriva justamente quando deveria conduzir o enfrentamento à crise sanitária mais grave do século.
—Não há uma visão global. Já era deficiente com o ministro Luis Henrique Mandetta (que deixou o cargo em abril) e depois foi piorando até que, agora, ninguém liga mais para o que o ministério fala. Assim, cada governador vai tomando atitudes, sob pressão dos prefeitos, e chegamos a uma verdadeira bagunça —diz Paulo Lotufo, professor de epidemiologia da USP.
Pazuello viu acurva decas ose óbitos crescer vertiginosamente durante os 61 dias de sua gestão. Em 14 de maio, o Brasil tinha uma média de 9.627 casos diários; ontem, eram 36.650. Em relação aos óbitos, a média passou de 686 mortes para 1.056 no mesmo período.
— É uma situação sem precedentes no mundo. As entidades globais não conseguem entender como o país que é o segundo em número de óbitos do mundo não tem um ministro efetivo, apenas um interino que não se pronuncia e não transmite nenhum tipo de mensagem num momento crítico do país —diz Nicolelis, coordenador do comitê científico do consórcio de governadores do Nordeste.
ORDENS DE BOLSONARO
Ao longo dos últimos dois meses, a pasta, que deveria se gu irà risca evidências científicas, ignorou-asem alguns casos para atendera vontade do presidente Jair Bolsonaro, como na mudança de orientações sobre o uso de hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19.
Não há comprovação científica da eficácia do remédio no combate ao novo coronavírus, mas Bolsonaro insistia no seu uso até mesmo nos casos leves. Já o Ministério da Saúde autorizava sua utilização apenas em pacientes em estado grave.
A divergência nesse ponto levou Teich a deixar o governo com menos de um mês no cargo. Após sua queda, o general Pazuello, então secretário-executivo da pasta, assumiu interinamento o posto de ministro. Apenas cinco dias depois, o ministério editou novo protocolo, autorizando ou soda hidroxicloroquina para pacientes em todos os estágio da doença.
No começo de junho,são deBol sonar o, o ministério mudou aforma de divulgação dos números da Covid-19, pondo em xeque a credibilidade das estatísticas oficiais. Os dados, que eramdi vulgados às19h, passaram a ser publicizados apenas perto das22h, para dificultara veiculação de reportagens.
O Ministério da Saúde também passou a publicar apenas a quantidade de casos e de mortes confirmados nas 24 horas anteriores, sem informar o total acumulado.
As mudanças foram suspensas por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Ele determinou que o ministério retomasse a forma tradicional de divulgação, considerando todos os casos confirmados nas últimas 24 horas, e informando o total acumulado.
— Para os epidemiologistas, a desorganização do ministério e a falta de transparência de dados prejudica análises e a definição de estratégias. Só com números exatos e reais podemos fazer previsões de cenários. Se esses dados não representam a realidade, a previsão está furada e ficamos dando tiros no escuro — diz Luciana Costa, diretora-adjunta do Instituto de Microbiologia da UFRJ.
LOGÍSTICA MELHOROU
Embora gestores de saúde dos estados apontem que houve uma melhora na distribuição de produtos necessários no enfrentamento à doença, os secretários alertam que ela continua abaixo do ideal, em especial no que diz respeito aos testes para detectar o novo coronavírus.
Em 24 de junho, o Ministério da Saúde reafirmou o plano da gestão Teich de distribuir 46 milhões de testes à população. Mas, segundo o portal oficial Localiza SUS, foram distribuídos 12,5 milhões de testes até ontem (27%).
A pasta afirmou à reportagem que “parte dos testes ainda estão com o Ministério da Saúde por questão logística, pois os estados não possuem capacidade para armazenar uma grande quantidade de uma vez só”.
Citou também a necessidade de“acondicionamentos corretos, com níveis de temperatura específicos, paranã o haver possíveis perdas” e afirmou que os demais testes “serão distribuídos à medida que os estados tiverem capacidade de armazenamento adequada, bem como de utilização”.
Na última quinta-feira, mais uma mudança relevante nas orientações para enfrentamento à pandemia: o ministério passou a recomendar que pacientes com sintomas leves de Covid-19 procurem atendimento médico, em vez de ficarem em casa . Antes, a orientação era procurar atendimento quando o quadro já era mais grave.
—Aprendemos ao longo da pandemia que, ao aguardar em casa, os pacientes chegam aos hospitais em quadros clínicos mais agravados — explicou o secretário-executivo da pasta, Élcio Franco, também militar.
CIÊNCIA X SENSO COMUM
Internamente, a entrada de vários militares deixou o clima mais tenso e desconfiado. Funcionários do ministério dizem que o ambi entejá tinha piorado desde a saída do exministro Luiz Henrique
Mandetta, antecessor de Teich, mas que isso ganhou novos contornos com a chegada dos militares, a ponto de servidores temerem que seus celulares estejam grampeados.
Nas reuniões sobre a pandemia, disse ao GLOBO um funcionário na condição de anonimato, os especialistas da pasta passaram ser contestados com senso comum e opinião, e não com dados técnicos. Houve até mesmo relatos de ameaças de abertura de processos administrativos contra servidores.