Correio braziliense, n. 20901, 14/08/2020. Brasil, p. 6

 

"Mortes poderiam ter sido evitadas"

Ingrid Soares 

Augusto Fernandes

Bruna Lima 

Maria Eduarda Cardim 

14/08/2020

 

 

O presidente Jair Bolsonaro falou, ontem, pela primeira vez, sobre a marca das 100 mil vidas perdidas desde que o número foi atingido no último fim de semana. Contudo, em vez de se solidarizar com as famílias das 105 mil vítimas da pandemia no país até o momento, ele disse que os óbitos teriam sido evitados caso os pacientes tivessem se medicado com hidroxicloroquina desde o início do diagnóstico. O presidente afirmou, ontem, em sua live semanal, que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) teria liberado a compra de cloroquina com uma receita médica comum.

Mesmo reconhecendo que não há nenhum estudo científico que comprove a eficácia da medicação contra a covid-19, o presidente comentou que ele é a “prova viva” de que o remédio pode combater a enfermidade. Em julho, Bolsonaro contraiu o novo coronavírus e fez um tratamento à base da hidroxicloroquina. Ele recebeu o diagnóstico em 7 de julho e se disse curado da doença em 25 de julho.

A fala do presidente aconteceu durante cerimônia, na capital do Pará, que marcou a inauguração do Parque Urbano Belém Porto Futuro. “Destinamos a esse estado maravilhoso, mesmo sem comprovação científica, mais de 400 mil unidades de hidroxicloroquina para o tratamento precoce da população. Sou a prova viva que deu certo. Muitos médicos defendem esse tratamento e sabemos que mais de 100 mil pessoas morreram no Brasil. Caso tivessem sido tratadas lá atrás, poderiam essas vidas terem sido evitadas. E mais ainda: aqueles que criticaram a hidroxicloroquina não apresentaram alternativa”, declarou Bolsonaro.

O presidente voltou a repetir, também, que sempre alertou sobre a necessidade de combater o vírus e o desemprego causado pela pandemia da covid-19. "Sabemos que a vida não tem preço, mas o desemprego leva à depressão e leva, também, à doença e à morte", declarou.

Garoto-propaganda

Mais tarde, durante a transmissão semanal que faz em suas redes sociais, Bolsonaro anunciou que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) facilitará o acesso à hidroxicloroquina e à ivermectina, medicamentos defendidos por ele para tratamento do novo coronavírus, mesmo sem ter eficácia comprovada para a doença. A partir de agora, segundo o presidente, não será mais necessária a retenção da receita no local da compra. “O presidente da Anvisa, o almirante Barra, acabou de confirmar a informação sobre a hidroxicloroquina e a ivermectina. Você já pode comprar com uma receita simples, caso o seu médico recomende para você, obviamente”, disse Bolsonaro. Até o momento, era necessária a apresentação de receita em duas vias. Agora, será preciso apenas uma que poderá ficar com o comprador.

Mais cedo, o ministro da Saúde interino, Eduardo Pazuello, falou que a pasta não tem estoque de hidroxicloroquina para atender à demanda reprimida de estados e municípios.  O medicamento normalmente é prescrito para malária e doenças autoimunes. Segundo o ministro, a pasta já distribuiu 5,3 milhões de doses do remédio. “Nosso estoque hoje, no Ministério da Saúde, é zero. Não temos nem um comprimido para atender às demandas. Nós temos uma reserva de 300 mil itens apenas para atender à malária guardados, que representa algo em torno de 20% do que eu preciso por ano”, disse ontem, durante audiência pública no Congresso. “Temos uma demanda reprimida de mais de 1,6 milhão de doses para estados e municípios, só hoje.”

No mês passado, a maior pesquisa conduzida no Brasil sobre o uso da cloroquina para tratar a covid-19, feita pelo grupo Coalizão Covid-19 Brasil, mostrou que o medicamento é ineficaz em casos leves e moderados da doença. Além disso, o remédio não reduz a taxa de óbito e está ligado a maior risco de arritmia e lesão hepática.

Recuperados

Os altos números da covid colocam o país em segundo lugar no ranking mundial das nações mais afetadas pela covid-19, no entanto, não são evidenciados no discurso do Ministério da Saúde, que prefere destacar apenas o número de recuperados da doença. Para o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, o índice de pessoas curadas evidencia “o acerto das ações do governo brasileiro em resposta à pandemia”.

Ontem, o general omitiu o número de infectados e de mortos pela doença no discurso proferido no encontro semanal promovido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Horas depois, voltou a ignorar os números ao participar da comissão mista do Congresso Nacional que acompanha as ações do governo no enfrentamento do vírus. “Até o final do dia de ontem (quarta), o Brasil contabilizava 2.310.000 de casos recuperados da covid- 19. Estamos entre os líderes mundiais em pacientes recuperados, o que evidencia o acerto das ações do governo brasileiro em resposta à pandemia”, afirmou Pazuello, antes de apresentar as ações do ministério aos parlamentares.

Em sua primeira fala na comissão mista, o ministro interino disse, ainda, que a “resposta brasileira está acontecendo em estrito comprimento ao regulamento sanitário internacional”.