O globo, n. 31747, 08/07/2020. Opinião, p. 3

 

É quase a espera de um milagre

Nelson Teich

08/07/2020

 

 

Inúmeras cidades brasileiras estão tentando sair do isolamento social e retomar a atividade econômica. As tentativas acontecem de forma confusa, muitas vezes intempestiva, não sendo baseadas em critérios que mostrem a hora certa e a forma segura de relaxar o distanciamento.

Os movimentos acontecem sem uma coordenação central e são baseados em uma estratégia de tentativa e erro, que é ineficiente e não gera aprendizado.

Um problema crítico é que não temos as informações necessárias vindas das cidades. Descentralização do cuidado, com falta de coordenação e de dados, levou à fragmentação e à perda de eficiência do sistema.

O modelo atual para liberar a economia pode acabar em inúmeras idas e vindas, onde a mesma coisa é feita repetidas vezes na ilusão de que, em algum momento, vai funcionar. É quase a espera de um milagre.

Precisamos de dados, conhecimento e propostas mais eficientes para que a sociedade possa retornar a uma realidade que amenize todas as perdas, angústias e tristezas que temos atualmente.

O Brasil precisa de um programa nacional de abordagem do distanciamento, coordenado pelo Ministério da Saúde, que seja usado por todas as cidades. Na construção desse programa, é crítico que posições pessoais e políticas não se coloquem acima das necessidades da população.

Vamos precisar de pesquisadores e epidemiologistas para definir a melhor forma de desenhar, implementar e conduzir as pesquisas voltadas para encontrar as melhores estratégias de trabalhar o distanciamento social. Estamos correndo contra o tempo. Quanto mais longa a quarentena, mais difícil vai ser administrar as consequências do impacto da Covid-19 na saúde, na economia e no comportamento das pessoas.

Precisamos, por exemplo, comparar uma cidade onde o lockdown é implementado com outra cidade onde a estratégia de distanciamento social é baseada em rastreamento de contatos e isolamento seletivo. Nessa segunda opção vai ser necessário um programa de testagem robusto e a capacidade de isolar as pessoas que fazem parte de populações mais carentes e que não conseguem fazer o isolamento em suas próprias residências. Tudo isso vai ter que ser planejado e viabilizado. Em grandes cidades, segmentos da população que diferem em pontos críticos, como situação financeira, capacidade de ficar em casa e se isolar, precisam ser avaliados de forma independente.

Podemos comparar estratégias de distanciamento social com maior ou menor utilização da Atenção Primária e do Programa de Saúde da Família para entender o impacto desse recurso nas políticas de distanciamento.

Assim como acontece com a Covid-19, precisamos ter informações cada vez mais detalhadas, completas, precisas e em tempo real dos outros problemas e doenças que acometem a sociedade para que possamos ter um sistema de saúde que cuide cada vez melhor de todos os brasileiros.

A liderança pelo Ministério da Saúde voltada para o combate à Covid-19 também precisa coordenar estratégias e ações oriundas da Saúde Suplementar e da iniciativa privada.

Temos muito para pesquisar, aprender e fazer.

Não sabemos como a Covid-19 vai evoluir, nem quanto tempo ela vai durar. Enquanto aguardamos a chegada de um medicamento ou de uma vacina que funcione, é crítico encontrar uma forma de sair da situação atual.

Existe uma sede de liberdade, do retorno a um nível de interação e mobilidade que tínhamos antes da Covid-19. É importante entender que liberar atividades que não conseguimos controlar, como abertura de bares, clubes e academias, pode ser um problema muito difícil de administrar.

(...)

Nelson Teich é médico e foi ministro da Saúde