Título: Da tragédia à superação
Autor: Valadares, João
Fonte: Correio Braziliense, 03/02/2013, Brasil, p. 7

Separados por quilômetros de distância e décadas de anos vividos, Lenir Ferreira de Queiroz Siqueira e Alan Silvério Simões têm uma dor em comum. Vítimas de dois grandes incêndios ocorridos no Brasil, eles reviveram na última semana, de maneira mais intensa, acontecimentos que deixaram marcas na pele e na alma. O fogo da boate Kiss, que matou 236 jovens e deixou outros tantos feridos em Santa Maria (RS), trouxe à memória de Lenir os últimos momentos passados com os dois filhos e o marido, ao longo do espetáculo do Gran Circus Norte Americano, na tarde de 17 de dezembro de 1961, em Niterói (RJ).

“A girafa tinha o mesmo nome da minha filha, Regina. Então eles acharam o máximo”, lembra a mulher. Depois de anunciado o último número, o salto triplo dos trapezistas, uma labareda lambeu a lona, destruindo em poucos minutos tudo ao redor. Considerado o pior incêndio do país, o episódio deixou 503 mortos, entre os quais a família de Lenir, hoje com 76 anos. Morador de Belo Horizonte, Alan se viu na tragédia do Sul. Ele também era um jovem de 23 anos que só queria se divertir no Canecão Mineiro, em uma noite de sábado de 2001. Por pouco não foi engolido pelas chamas. Anos depois das tragédias, Alan e Lenir mostram que é possível seguir em frente.

Lenir Ferreira de Queiroz Siqueira Sobrevivente do incêndio no Gran Circus Norte Americano, em 1961, Niterói, Rio de Janeiro Perdeu marido e dois filhos

Dezenas de cirurgias, transplante de pele vinda da Argentina e nove meses de internação. “A conta de nascer outra vez”, calcula Lenir. A senhora de 76 anos, memória viva do maior incêndio do país, mas pouco conhecido da população, compara o tempo que passou no hospital com o período de uma gestação. O simbolismo ajudou-a a redesenhar a vida depois que o marido e os dois filhos — Regina, de 3 anos, e Roberto, com quase 2 — morreram na tragédia. “Mudou tudo, foi tudo diferente daquele momento em diante”, afirma a mulher.

Para se reinventar, Lenir recorreu à fé e aos parentes. “Sei o que essas famílias do Sul estão passando, é uma dor insuportável. A gente sempre fica se perguntando o porquê. Está fora da nossa compreensão. Eu decidi acreditar que são os desígnios de Deus e passei a viver para os meus sobrinhos, meus irmãos”, diz. Em vez de ficar concentrada na própria dor, ela começou a prestar atenção ao seu redor. Já recuperada, trabalhou por décadas como atendente e datilógrafa do centro de reabilitação onde se tratou. “Pude acompanhar o sofrimento de uma mãe durante dias ao lado de um filho doente. Por isso, eu nunca passei.”

Das recordações da família, Lenir só tem três retratos. O restante foi queimado em um outro incêndio, ocorrido há seis anos, no apartamento vizinho ao seu. As chamas consumiram praticamente todos os objetos pessoais. “De novo, tive a solidariedade das pessoas, que me ajudaram. Isso tem que ser valorizado. Prefiro me prender a isso, levo a vida com alegria, em vez de lamentar. A saudade é eterna. Mas temos que nos resignar”, diz Lenir. Nos últimos dias, porém, foi impossível não recordar a tristeza daquela matinê no circo.

Com cerca de 3 mil pessoas, o Gran Circus Norte Americano enchia os olhos da população acostumada com espetáculos menores. “Nós sentamos bem perto do picadeiro. Quando de repente começou o fogo, as pessoas foram caindo umas em cima das outras. Eu fiquei caída de bruços, agarrada ao meu filho. Os bombeiros chegaram perguntando quem estava vivo. Consegui levantar o braço”, recorda Lenir. Lá também, como em Santa Maria, só havia uma porta de entrada e saída. A cena trágica do que restou do circo rodou o mundo, atraindo atenção e ajuda de outros países. Pressionado, o governo apontou um ex-funcionário do circo como responsável, versão na qual poucos acreditaram.

Enquanto isso, a mineira criada em Caetés, mas radicada em Niterói lutava contra a morte na unidade terapia intensiva (UTI). Quando a mãe, vinda de Minas Gerais, chegou, não a reconheceu. “Ela disse: ‘essa não é minha filha’. Eu respondi: ‘sou eu, sim, mãe’”, conta Lenir. As marcas do fogo estão na cabeça, no braço e nas costas. Mas a mulher, mais uma vez, não reclama. “Vivo sem complexo. Como nasceu pouco cabelo, na rua uso peruca. Em casa, fico com a cabeça descoberta mesmo por causa do calor”, explica.

Lenir nunca se casou de novo. “Meu marido era muito especial. Eu não iria encontrar ninguém como ele. Não quis tentar”, afirma. Aos 76 anos, gosta da casa cheia. Sobrinhos com os filhos, irmãos e amigos sempre são bem-vindos. O único programa que nunca mais fez foi ir ao circo. “Passo longe. Não suportaria”, diz. Aos 76 anos, Lenir simplesmente não para. Depois de um longo papo, agradece e pede desculpas por ter que desligar. “Meu irmão está no hospital, precisa de mim. Vou para lá”, despede-se. (RM)

Alan Silvério Simões Sobrevivente do incêndio no Canecão Mineiro, em 2001, Belo Horizonte

Medo de locais fechados superado com tratamento psicológico “Na hora em que soube o que houve no Rio Grande do Sul, já liguei uma coisa à outra. Infelizmente, vieram as lembranças. Não dá para esquecer”, diz o técnico em manutenção Alan Silvério, 34 anos. Por volta das 22h30, de 24 de novembro de 2001, acompanhado por um amigo, ele entrou na casa de shows Canecão Mineiro, que funcionava sem alvará na Avenida Tereza Cristina, no Barro Preto, bairro da Região Centro-Sul de Belo Horizonte.

Do local onde se sentou, Alan não conseguiu ver muito bem o pequeno espetáculo pirotécnico realizado por uma das atrações da noite, a banda Armadilha do Samba, que soltou uma cascata de fogos de artifício. As chamas se espalharam rapidamente. “Ouvi o pessoal gritando: ‘Tá pegando fogo’. Olhei para cima e vi a fumaça”, relata Alan. Não havia saídas de emergência. Em pânico, as pessoas — mais de mil em uma boate com capacidade máxima para cerca de 300 — passaram a correr todas em uma mesma direção: a única porta que dava para a rua. Derretido pelo fogo, o forro do teto começou a cair e arder sobre a pele das pessoas. No meio do empurra-empurra, muitos caíram e acabaram pisoteados.

“Para sair, tive que passar por cima do pessoal”, admite Alan. Quando finalmente alcançou o lado de fora, o jovem viu um cenário de guerra. Pessoas desmaiadas, chorando, desconsoladas, perplexas, sem saber o que fazer. “Muita gente queria voltar para dentro da boate e resgatar amigos que haviam ficado pra trás”, conta o técnico em manutenção, que sofreu queimaduras de primeiro, segundo e terceiro graus nos braços, nas pernas, no ombro direito e no tórax. O corpo e a mente conservam as cicatrizes. Alan ficou internado por 19 dias e se submeteu a cirurgias de enxerto de pele. Foram 13 meses afastado do trabalho e outros seis em tratamento psicológico. “Demorou para eu voltar a ir a boates e casas de festa fechadas. Sempre olho se tem saída de emergência.”

Os relatos de outros jovens que sobreviveram à tragédia não são diferentes. Giancarlo Henrique Dias e Thiago Augusto Azevedo, ambos com 17 anos à época, lembram do pânico. “A escada era estreita. Teve uma hora que ninguém conseguia mover um dedo”, detalha Thiago. “Nem sei quantos minutos ficamos ali, mas pareceu uma eternidade. Sua vida toda passa na sua cabeça”, descreve o amigo.

A dupla também carrega na pele a memória da fatídica balada, que deixou sete mortos e 197 feridos. O fogo marcou Thiago nas costas, na mão, no cotovelo e na barriga. “Já tive pesadelos com o que ocorreu. Não vou mais a boates, casas de show, locais fechados. Fico com medo de tudo se repetir.”

Giancarlo teve queimaduras no rosto, no peito e no braço. Ele, que hoje é auxiliar administrativo, ficou 23 dias internado e teve de ser submetido ao transplante de pele. “Sonho muito com pessoas e casas pegando fogo, aviões caindo e explodindo”, conta o rapaz. “Não tem como imaginar, só quem viveu sabe. Foi um inferno.”