Título: A dor se organiza
Autor: Valadares, João
Fonte: Correio Braziliense, 03/02/2013, Brasil, p. 7

Parentes e amigos das vítimas do incêndio na cidade gaúcha articulam grupo para cobrar do Poder Público atitudes diante da tragédia. Primeiro objetivo da Associação Anjos Heróis de Santa Maria é desapropriar terreno da Kiss para fundar um memorial

Uma semana depois da trágedia, a cidade gaúcha segue cambaleando. A tragédia que matou por asfixia 236 pessoas no incêndio da boate Kiss não se resume à Rua dos Andradas, número 1925. A dor nunca será gasta. Está impregnada. Tem cheiro. Nas ruas, a fitinha preta amarrada na carroça guiada por um menino de 15 anos é a mesma que une todos os dias motoristas de ônibus, taxistas, empresários e catadores de lixo para lembrar o que Santa Maria não pode esquecer. E do choro começam a surgir, ainda que timidamente, as primeiras ações para juntar forças, organizar gestos e amparar famílias. Partiu de amigos que perderam outros. As mães nem sabem direito, mas um jovem administrador de empresas e um estudante de ciência da computação da Universidade Federal de Santa Maria formalizaram a Associação Anjos Heróis de Santa Maria. Articulam-se para desapropriar o terreno da boate e construir um grande memorial em homenagem aos mortos.

A associação, que já conta com uma sede, também será um ponto de origem para orientar as famílias dos mortos com amparo social, assistência psicológica e jurídica. O administrador Bruno Perin, 25 anos, mostra as mensagens trocadas com o melhor amigo, Vinícius Montardo, 26 anos, poucas horas antes da tragédia. Bruno nasceu em Santa Maria, mas mora em São Paulo desde 2010. “Naquela noite, estava em São Paulo e senti saudade de Vinícius. Mandei uma mensagem pelo celular. Ele estava na boate e já respondeu. Eu perdi o meu melhor amigo. Ele salvou 14 pessoas, mas acabou morrendo. Temos que orientar essas famílias e é isso que vamos oferecer. Um lugar para canalizar todos os tipos de assistência”, explica. Durante a semana, Bruno publicou um manifesto na internet para cobrar ajuda de todos os brasileiros. “Eles foram tão aplaudidos em várias caminhadas e celebrações, mas achamos justo um monumento para honrá-los.”

Ajuda entre semelhantes Na sexta-feira, Bruno e Pablo Bizzi, 24 anos, reuniram-se com o pároco de Santa Maria, Celito Moro. “Estamos conversando com todos os segmentos da cidade. Os parentes ainda não pararam para pensar em nada. Eles ainda estão vivendo a tragédia. Queremos ajudar, apontar quem eles devem procurar. Eu perdi 10 conhecidos. Vamos fazer uma homenagem a todos. Todo mundo aqui é irmão”, diz Pablo, estudante de ciência da computação. Durante a semana, os dois se reuniram com vereadores para saber como proceder em relação à desapropriação do terreno. “A ideia inicial é que o monumento seja erguido lá onde funcionava a boate. Para isso, já estamos analisando todos os caminhos jurídicos. Essa luta pode levar mais 10 anos. Mas as pessoas vão decidir. Se entenderem que é melhor não esperar e fazer o memorial em outro lugar, não há problema. Nossa organização é apartidária e democrática. Somos apenas um canal para ajudar essas pessoas.”

O memorial em homenagem às vítimas não levará nome de nenhuma pessoa. “Vamos apenas gravar os nomes de todos estes jovens que morreram aqui. São heróis porque grande parte deles morreu ao voltar para salvar vidas. No monumento, não queremos nome de nenhuma pessoa jurídica. Não vamos colocar nem o nome da associacão”, declarou Pablo. A Anjos Heróis já foi procurada pela Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo TAM JJ3054. “Toda ajuda é muito importante. Eles nos ligaram essa semana para oferecer orientações. Como você pode ver, aqui em Santa Maria, está muito pior do que imaginas ou estão te contando. Nós choramos tanto que chegam a arder os olhos. Sempre tem alguém caindo que a gente levanta, e quando pensamos em cair, alguém nos puxa de volta”, relata Bruno no manifesto.

Na paróquia, os dois conheceram uma senhora chamada Tereza Lenen. Ela é quem vai colocar as famílias em contato com a organização. “Muitas já estão sabendo, mas ainda é muito cedo. Elas ainda estão vivendo a tragédia. Não pararam para pensar em absolutamente nada. Não chegaram no pós-tragédia, que é a segunda fase. Eu vou fazer essa ponte. Essas pessoas precisam de ajuda”, comunicou.