Título: Formação médica é problema
Autor: Rodrigues, Gizella; Alves, Renato
Fonte: Correio Braziliense, 03/02/2013, Cidades, p. 23

Apesar de o DF ter a maior proporção de profissionais por habitante do país, erros são frequentes na capital. Na maioria das vezes, o problema começa na base educacional e segue com a falta de especialização e de atualização na carreira

Para as famílias que perdem entes queridos em procedimentos médicos, não há justificativa que diminua a saudade, o sofrimento e a angústia. Nem para os que ficam com sequelas permanentes. A punição aos profissionais que exercem mal a medicina não é eficaz nem traz alento. Nenhuma indenização cicatriza a dor. Os erros, alguns fatais, acontecem por desatenção e imprudência, sendo que o cuidado deveria ser redobrado para quem tem uma vida sob a própria responsabilidade.

Muitas vezes, o caminho para a falha começa na faculdade e acompanha a vida do profissional. Má-formação, falta de especialização e de atualização, excesso de trabalho, estrutura precária e incompetência. Todos fatores que transformam erros em crimes. A principal preocupação dos especialistas ouvidos pelo Correio ocorre em relação à formação dos futuros médicos. Eles apontam a proliferação de faculdades de medicina de baixa qualidade no país como um dos grandes responsáveis pelo crescente número de processos. Sem uma base adequada, a chance de errar é maior.

Além disso, muitos recém-formados não fazem a residência porque não há vagas para todos eles. Quando chegam ao hospital, atendem mais pacientes do que deveriam, muitas vezes, em instituições sem boas condições de trabalho. Como consequência, ficam cansados e estressados e, portanto, mais propensos a falhas.

No Brasil, quase 13 mil alunos se graduam em medicina por ano, segundo o Ministério da Educação (MEC). O país conta com 371 mil médicos. Há 20 anos, havia 83 faculdades de medicina. Hoje, são 197. Mais do que nos Estados Unidos e na China, com populações muito superiores. Só perdemos para a Índia, com 272 instituições. Quantidade, no entanto, não significa qualidade. Mais da metade dos recém-formados em instituições de São Paulo, por exemplo, foi reprovada em um exame do conselho regional do estado, em novembro do ano passado.

O DF tem quatro faculdades de medicina, todas reconhecidas pelo MEC: a da Universidade de Brasília (UnB); a Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS), distrital; e a Universidade Católica de Brasília (UCB) e as Faculdades Integradas do Planalto Central (Faciplac), ambas particulares. Cerca de 320 profissionais entram no mercado a cada ano. Número suficiente para atender à demanda brasiliense.

Dados do Conselho Federal de Medicina (CFM) mostram que, com 10,3 mil médicos e 2,5 milhões de habitantes, o DF tem o maior número proporcional de profissionais de saúde do país. São 4,02 para cada grupo de mil moradores. No Maranhão, com o pior índice, há 0,68 profissional para mil cidadãos.

De acordo com Paulo César de Jesus, diretor do curso de medicina da UnB, o mais antigo do DF, há muitas faculdades ruins no Brasil, sem hospitais-escola, onde o aluno pratica o aprendizado da sala de aula, por exemplo. “Não ter isso é péssimo. No mínimo, o último ano do estudante de medicina deve ser em um internato, que ocorre justamente para ele colocar em prática o que aprendeu no curso”, afirma. Em faculdades que não têm os hospitais-escola, conta o médico, o formando faz um estágio nos hospitais da rede pública de saúde, mas não necessariamente sob a supervisão de um professor.

Múltiplos fatores Para o diretor do curso da UnB, a ocorrência de erro médico é “multifatorial”. Além da má- formação profissional, a sobrecarga de trabalho e a “tecnalização” da medicina são fatores que contribuem para os erros. “Quando o número de pacientes é maior que o de profissionais, não há tempo suficiente para construir um bom atendimento e uma boa relação”, explica. “Outra coisa é o atendimento tecnilizado. Tem médico que confia demais na máquina. Ela auxilia, mas não faz tudo por ele”, completa.

Paulo Roberto Silva, coordenador do curso de medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS), acredita que as causas para a falha vão desde a formação até a sobrecarga de trabalho, passando pela necessidade de atualização do profissional. Segundo ele, o erro começa no diagnóstico. “É preciso ter tempo para um diálogo no atendimento. Médico que atende um paciente em cinco minutos pode errar”, afirma.

O presidente do Sindicato dos Médicos do DF, Gutemberg Fialho, acrescenta que a falta de estrutura dos hospitais também é um fator importante. “Às vezes, o médico precisa fazer uma tomografia para identificar uma doença, e o tomógrafo está estragado. Sem o exame, ele pode errar o diagnóstico”, diz. Para ele, o volume de trabalho e a baixa remuneração dos planos de saúde também levam a falhas. “Se o hospital coloca um único médico para atender no plantão, como acontece em Ceilândia, ele não tem tempo nem de pensar. Na rede privada, o médico se submete aos baixos honorários e atende mais pacientes do que deveria”, afirma.

Outra coisa é o atendimento tecnilizado.Tem médico que confia demais na máquina. Ela auxilia, mas não faz tudo por ele” Paulo César de Jesus, diretor do curso de medicina da UnB

Memória

2013 25 de janeiro Familiares de quatro pacientes mortos em cirurgias acusam o médico Sérgio Puttini Machado, especialista em aparelho digestivo, de ter provocado os óbitos durante cirurgias de vesícula, refluxo e esôfago de Barrett. As operações foram feitas entre 2001 e 2013.

20 de janeiro A menina Rafaela Luiza Formiga Morais, de um 1 ano e 7 meses, deu entrada no Hmib, na Asa Sul, com manchas vermelhas pelo corpo. Segundo Jane Formiga (na foto, com a filha), 31 anos, mãe da criança, Rafaela estava com urticária e o quadro não era grave. Rafaela passou mal cinco minutos após receber 3,5ml de adrenalina, recomendado pela pediatra Fernanda Sousa Cardoso. A menina apresentou complicações e teve de ser transferida para a UTI do Hospital Regional de Santa Maria (HRSM), mas morreu após cinco paradas cardíacas.

2012 13 de fevereiro O estudante Marcelo Dino, 13 anos, sofreu uma crise de asma na escola, enquanto praticava exercícios físicos. A família do jovem o encaminhou ao Hospital Santa Lúcia, na Asa Sul, por volta das 12h. Às 6h do dia seguinte, o garoto teve uma nova complicação respiratória, e os médicos aplicaram broncodilatadores. O garoto morreu às 7h. Uma médica e uma técnica de enfermagem foram indiciadas por homicídio culposo.

2010 25 de janeiro A jornalista Lanusse Martins Barbosa, 27 anos, morreu durante lipoaspiração realizada no Hospital Pacini, na 715/915 Sul. Investigações policiais concluíram que houve erro do médico Haeckel Cabral Moraes, que acabou indiciado e denunciado por homicídio qualificado pela morte da jovem. A autópsia revelou que houve perfuração da veia renal direita da paciente.

2002 Fevereiro Renata Vieira Gonçalves Lopes foi vítima de um erro médico e, desde então, vive em estado vegetativo. A jovem tinha 32 anos e fazia tratamento para engravidar. Teve uma parada cardíaca depois de realizar um exame de videolaparoscopia em uma clínica de fertilização artificial. O médico saiu da sala de cirurgia antes de a paciente acordar, e Renata ficou 15 minutos sem socorro. O caso de Renata é o mais emblemático exemplo de erro médico no DF. Depois da tragédia, Luiz Felippe Gonçalves, pai de Renata, criou a Associação das Vítimas de Erros Médicos em Brasília.