Título: AGU quer ressarcimento de indenizações às vítimas
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 06/02/2013, Brasil, p. 7

Tão logo sejam identificados os responsáveis pela tragédia da boate Kiss em Santa Maria (RS), onde ocorreu um incêndio que matou 238 pessoas e deixou centenas de feridos, a Advocacia-Geral da União (AGU) pedirá o ressarcimento por eventuais benefícios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) tanto para trabalhadores da casa noturna quanto para os frequentadores e familiares, caso a União tenha que garantir pensões. A Procuradoria-Geral Federal da AGU, que atua no caso, informou que poderá cobrar o prejuízo de entes privados, como os donos da boate, e de órgãos públicos, se ficar provada a conduta dolosa ou culposa que gerou o benefício pago pela Previdência. O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, entretanto, restringiu suas manifestações ontem, durante visita ao Supremo Tribunal Federal, aos sócios do estabelecimento e integrantes da banda Gurizada Fandangueira, defendendo a responsabilização financeira deles.

De acordo com a AGU, seria a primeira vez que se busca a reparação de prejuízos com gastos previdenciários feitos em virtude de acidente ocorrido dentro de estabelecimento comercial envolvendo consumidores. O órgão informou que a Previdência Social em Santa Maria já está fazendo uma busca ativa dos familiares das vítimas e dos feridos para agilizar os benefícios devidos. Mas ressaltou que somente ao término do inquérito policial, que trará as provas levantadas pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul, haverá uma análise por parte da equipe da AGU para verificar a possibilidade das ações regressivas — processos que buscam obrigar os agentes que provocaram a condição necessária para o pagamento de benefícios do INSS a ressarcir os cofres públicos.

Até dezembro de 2012, já haviam sido ajuizadas 2.389 ações regressivas, com expectativa de ressarcimento de R$ 415 milhões, segundo a AGU. O alvo desses processos são agressores enquadrados na Lei Maria da Penha, que levaram suas vítimas a precisar dos benefícios do INSS, e responsáveis por acidentes de trânsito. Um quarto dessas ações, de acordo com informações do órgão, foram julgadas ao menos em primeiro grau, com 69% delas consideradas procedentes por juízes de todo o país. O índice é considerado positivo. A AGU atribui a taxa de sucesso ao fato de só ajuizar os processos quando há provas preexistentes de dolo ou culpa do responsável pela ocorrência do fato.

Embora Adams não tenha mencionado os órgãos públicos, que também são investigados pela polícia gaúcha, já existem precedentes para a responsabilização deles no país. Conforme o Correio revelou, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que, em caso de omissão na fiscalização de casas noturnas, a responsabilidade de um incêndio fatal é da administração pública. Na tragédia do Canecão Mineiro, que em 2001 matou sete pessoas em Belo Horizonte, a Corte determinou que a prefeitura pagasse indenização de 300 salários mínimos a uma das vítimas. Esse caso, que guarda fortes semelhanças com o drama da casa noturna gaúcha, servirá como parâmetro para os sobreviventes de Santa Maria e também para os familiares dos 238 jovens mortos. O caso do Canecão Mineiro é o primeiro processo relativo a incêndios em boates analisado pelo Supremo.

Perícia Na manhã de ontem, a Polícia Civil voltou à boate Kiss para fazer uma nova perícia. A vistoria teve o intuito de verificar o ponto onde o incêndio começou depois que um dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira acendeu um artefato pirotécnico, atingindo a espuma do teto que servia de isolamento sonoro. A reconstituição da noite da tragédia ainda não tem data marcada. Os investigadores já fizeram algumas simulações com testemunhas. Ainda há, entretanto, lacunas sobre a noite do acidente. Divergências nos depoimentos estão sendo analisadas.

No fim da tarde, o Ministério Público do Rio Grande do Sul indeferiu o pedido de revogação da prisão temporária dos sócios da boate Kiss, Mauro Londero Hoffmann e Elissandro Spohr, esse último conhecido como Kiko. O mesmo posicionamento foi tomado em relação à solicitação semelhante feita pela defesa do produtor da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão. Kiko, que até ontem estava internado em um hospital da cidade de Cruz Alta, vizinha de Santa Maria, recebeu alta. Ao sair pelos fundos da unidade de saúde, ele foi encaminhado à delegacia, onde prestou depoimento, e levado, posteriormente, para a Penitenciária Modulada em Ijuí.

Legislação Ontem, policiais civis cumpriram mandado de busca e apreensão na empresa Hidramix, que teria elaborado o Plano de Prevenção e Combate a Incêndios da boate Kiss. O documento, porém, tem sido classificado como uma "farsa técnica" por não atender aos parâmetros mínimos exigidos pela lei. O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, afirmou ontem que o tal plano simplificado decorre de uma "legislação débil".

Exatamente para modernizar a legislação brasileira, a comissão externa criada pela Câmara dos Deputados para acompanhar as investigações da tragédia em Santa Maria apresentou o roteiro de trabalho ontem. Além de entrevistas com órgãos e especialistas gaúchos, o colegiado ouvirá os consultores legislativos sobre o aparato legal a respeito de incêndios no Brasil. Com base nas informações colhidas, os parlamentares apresentarão um projeto de lei com parâmetros mínimos de prevenção a incêndios, que servirão para todo o país — cada estado e município segue regra própria, sem uniformidade.

Sobre quem recaem as investigações

Elissandro Spohr (foto) e Mauro Hoffman

Sócios da boate Kiss Funcionavam sem alvará, além de terem negligenciado normas básicas de segurança (ausência de saídas de emergência, capacidade de público excedida, extintores falhos, espuma proibida no teto). Corpo de Bombeiros de Santa Maria Teria autorizado o funcionamento da boate, mesmo sem padrões de segurança. A casa noturna se mantinha aberta amparada no alvará passado, enquanto esperava nova vistoria. Prefeitura de Santa Maria Teria sido omissa ao permitir o funcionamento do local mesmo com alvará vencido desde agosto, tese sustentada inclusive pelo governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Bonilha (produtor)

Integrantes da banda Gurizada Fandangueira Usaram artefato pirotécnico proibido para locais fechados, supostamente por serem mais baratos.

Apurações O que já se descobriu sobre o incêndio

Integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que tocava na boate, usaram um artefato pirotécnico proibido para lugares fechados. Faíscas do artefato atingiram o teto da boate, que estava revestido com uma espuma altamente inflamável, comprada em uma loja de colchão da cidade. O extintor de incêndio foi acionado pelo vocalista da banda e por um segurança, tão logo começou o fogo, mas não funcionou. Havia mais gente do que a capacidade do local, de 691 pessoas. Estima-se que o público da noite era de 750 a 800 pessoas, maioria estudantes. A boate tinha apenas um acesso para entrada e saída. Não havia saídas de emergência. O alvará de funcionamento da boate estava vencido. Os donos alegam que já tinham solicitado a vistoria para um novo documento. Enquanto isso, poderiam permanecer funcionando. Circuito interno de vídeo, que poderia elucidar as investigações, estava em manutenção. Com a escuridão, a fumaça preta e o pânico, os jovens não conseguiram achar a saída da boate. Os basculantes do banheiro, onde foram encontrados mais de 100 corpos, não abriram. 90% dos mortos na tragédia tiveram asfixia mecânica.