O globo, n. 31768, 29/07/2020. Mundo, p. 39

 

Queimando pontes

Filipe Barini

29/07/2020

 

 

Democrata ataca Eduardo Bolsonaro por postar video pró-Trump, e analistas criticam apoio aberto

 Em menos de 100 dias, milhões de eleitores americanos decidirão quem comandará os EUA até janeiro de 2025, com políticos e diplomatas de todo o mundo observando a certa distância a disputa, hoje mais favorável ao democrata Joe Biden, vicepresidente no governo de Barack Obama. Sem a mesma cautela, o governo brasileiro intensificou seu apoio à reeleição de Donald Trump, mesmo diante do risco do isolamento político no caso de vitória da oposição, apontam diplomatas e especialistas ouvidos pelo GLOBO.

No episódio mais recente desse engajamento, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que presidiu a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara até dezembro, publicou no Twitter um vídeo da campanha de Trump repleto de críticas aos democratas. Horas depois, em uma atitude sem precedentes, foi rebatido pelo presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos EUA, Eliot Engel, democrata, que tachou a atitude de Eduardo de “vergonhosa e inaceitável”: ele afirmou que “a família Bolsonaro precisa ficar fora da eleição americana”.

‘LIBERDADE DE EXPRESSÃO’

O parlamentar brasileiro, que no começo do ano criou uma crise com a China, também pelo Twitter, tentou se explicar ontem, afirmando que sua preferência por Trump era uma “convicção pessoal” e defendendo seu direito à “free speech” (liberdade de expressão). Ao comentar o incidente, o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Nelsinho Trad (PTB-MS), disse ver os comentários de Engel como parte do “jogo político”, visto o deputado ser democrata, de campo “ideologicamente contrário”.

—Daqui pra frente vai ter muitas dessas. É o jogo da política.

Já o Itamaraty afirmou que não comentará assuntos relativos ao quadro eleitoral dos Estados Unidos. Por sua vez, o embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, defendeu Eduardo em entrevista ao GLOBO, afirmando que ele exercia sua liberdade de expressão ao postar o vídeo em apoio a Trump.

— Todos têm a habilidade de falar a quem eles estão pró e contra como quiserem, e não vou dizer para alguém que não deve falar bem ou mal do meu presidente.

Mas diplomatas aposentados e especialistas em relações internacionais viram a iniciativa de Eduardo com estranheza e apontaram os riscos dessa aposta. Segundo o ex-embaixador do Brasil em Washington Rubens Barbosa, esse apoio não necessariamente é bem-vindo, já que Trump criticou a situação sanitária no Brasil e vetou a entrada de brasileiros nos EUA.

— Me ocorreram duas coisas sobre o episódio: primeiro que o apoio acabou sendo um “fogo amigo”: Bolsonaro não é muito próximo de Trump, a própria campanha de Trump não quer que ele se aproxime. A outra é que, na visão americana, os países não têm amigos, têm interesses. O fato de ser amigo do Trump não quer dizer que você esteja acima de tudo — pontuou o embaixador Barbosa, que comandou a embaixada na capital americana entre 1999 e 2004.

BIDEN EM VANTAGEM

O discurso de Eduardo Bolsonaro, que reflete aposição do Palácio do Planalto, levanta questões sobre seu impacto na postura diplomática do Brasil e suas consequências futuras para o país.

— Minha esperança, a esta altura, era de que o governo Bolsonaro procurasse abrir canais de comunicação com o lado democrata. Ainda existe a possibilidade de Trump virar o jogo, mas o quadro está desfavorável —afirmou ao GLOBO o embaixador Roberto Abdenur, que chefiou a embaixada do Brasil em Washington entre 2004 e 2006.

De acordo com o site Real Clear Politics, responsável por agregar dezenas de pesquisas nacionais e estaduais nos EUA, B id ena parece em vantagem tanto no cenário majoritário, usa doparas eme diro clima geral do eleitorado, como nas disputas locais, que, na prática, decidem a eleição no Colégio Eleitoral.

Alguns modelos também apontam para a possibilidade de os democratas manterem a Câmara e conquistarem o Senado —hoje republicano.

— Esse caso (de Eduardo Bolsonaro) confirma uma coisa que digo há tempos: o governo Bolsonaro queimou pontes com os democratas. Você precisa contar com algum apoio no Congresso (americano). É algo inédito nas relações entre Brasil e EUA — disse Carlos Augusto Poggio, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). — Eduardo Bolsonaro não compreende o papel dele (...), ainda acha que é um militante de redes sociais.

Para os embaixadores ouvidos pelo GLOBO, em uma eventual vitória de Biden, o país se veria sob crescente pressão em áreas onde hoje os governos de EUA e Brasil têm visões similares, como na questão ambiental, no trato com organismos internacionais e na agenda conservadora. Isso poderia levar a um isolamento diplomático, ainda mais que as relações com aliados tradicionais europeus, como França e Alemanha, e os países da América Latina foram postas em segundo plano.

‘CORRETO SERIA FICAR QUIETO’

Para os analistas, mesmo em uma eventual vitória de Trump, a situação poderia ser um pouco mais favorável, mas dependeria dos interesses de momento do segundo mandato do republicano.

— O Brasil nunca foi prioridade para os EUA — afirma Poggio.

— O discurso se torna ainda mais complicado com as eleições. A postura correta seria ficar quieto. Mas o governo está fazendo uma aposta, se não der certo vai ter que reconstruir essas pontes.