Correio braziliense, n. 20909, 22/08/2020. Colunas, p. 2

 

Nas entrelinhas: Maia, o dono do tabuleiro

Carlos Alexandre de Souza 

22/08/2020

 

 

A semana foi positiva para Rodrigo Maia. Conhecido pela postura independente e frequentemente crítica do governo, o presidente da Câmara dos Deputados salvou o Planalto na última quinta-feira, quando a Casa legislativa manteve o veto do presidente Jair ao reajuste dos servidores públicos até 2021. O governo foi surpreendido pela votação no Senado, possivelmente contando com a aparente proximidade com o presidente da Casa, Davi . A reação do Planalto não poderia ser mais sintomática da descompostura nas relações de poder em Brasília. foi ao extremo: “Se esse (a derrubada) veto for mantido na Câmara, é impossível governar o Brasil. É impossível”. O ministro Paulo Guedes, também conhecido pelo destempero, provocou uma hecatombe. “Pegar o dinheiro da saúde e permitir que se transforme em aumento de salário do funcionalismo é um crime contra o país”, denunciou o ministro, que, provavelmente, terá de se explicar aos parlamentares ofendidos com os termos utilizados pelo responsável da política econômica.

Com o governo atordoado perante a votação no Senado, coube ao chefe da Câmara colocar o trem nos trilhos. Após costurar um acordo com os líderes partidários, Maia conseguiu 316 votos favoráveis ao veto, concretizando o esforço do governo de conter mais uma fonte de pressão sobre o combalido Orçamento da União. Além de referendar uma necessidade dos cofres públicos em nome da contribuição dos servidores públicos ao esforço para combater a pandemia, Rodrigo Maia deu uma demonstração de que política, quase sempre, é a arte do consenso. Para um governo acostumado a operar constantemente no modo do confronto, esse alerta é quase didático. De quebra, a atuação de Maia deu uma sobrevida a Paulo Guedes, estremecido no governo em razão da briga com a ala desenvolvimentista e com o trânsito no Congresso gravemente comprometido após o desgaste desta semana. Guedes pode até não reconhecer, mas está, cada vez mais, dependente de Maia: precisa do Legislativo para lidar com as emergências decorrentes da pandemia e, a longo prazo, avançar em questões cruciais como a possível criação da CPMF e as reformas tributária e administrativa.

O protagonismo de Maia não se limitou aos percalços do ministro da Economia. Contrariado com o aumento de 25% aplicado pelas operadoras de planos de saúde, o dono da pauta na Câmara mandou recado direto à Agência Nacional de Saúde (ANS). Se a autarquia não tomasse providências, o Congresso votaria projeto de lei que determinaria a suspensão de reajustes pelos próximos quatro meses. A pressão fez efeito. Ontem, após reunião extraordinária, a ANS vetou a correção anual das mensalidades nos planos de saúde até dezembro.

A ascendência de Maia, esta semana, torna-se mais interessante se levarmos em conta que, até outro dia, integrantes do governo o consideravam como carta fora do baralho, peça menor no jogo de articulações de Brasília. Com a proximidade da eleição para a presidência da Câmara, marcada para fevereiro, o deputado demista estaria a caminho do crepúsculo. Como diz o ditado popular, colocaram o carro na frente dos bois. Maia demonstrou não apenas que tem muita influência na Câmara, como também poder de fogo para influenciar a agenda do Executivo. No xadrez de Brasília, ele tem se mostrado mais para dono do tabuleiro do que o bispo.

Mesmo antes do início da pandemia, o presidente da Câmara dos Deputados adotou uma postura independente, por vezes crítica, do governo . São conhecidas, por exemplo, as declarações contundentes contra o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub. Até aí, não chega a ser algo excepcional, tal a unanimidade em torno da incompetência do antigo titular do MEC. Mas o demista também se posicionou firmemente em defesa da ciência no combate à pandemia; participou de articulações importantes no combate à pandemia, como a aprovação do Orçamento de Guerra e a elevação do auxílio emergencial, inicialmente de R$ 200 para R$ 600. E tem se posicionado de maneira muito clara na agenda econômica do governo, que inclui propostas controversas como a criação de uma nova CPMF, agora, em versão digital. Sem receio de discordar quando se faz necessário, o presidente da Câmara tornou-se personagem-chave para a condução dos assuntos da República. Assumiu o vácuo de poder criado pela desarticulação política no Palácio do Planalto, para satisfação de aliados e desgosto de adversários.