O globo, n. 31777, 07/08/2020. Mundo, p. 20

 

Imigrantes vivem em ponte entre Brasil e Peru

Leandro Prazeres

07/08/2020

 

 

Barradas por portaria baixada para conter avanço da pandemia, pelo menos 32 pessoas de várias nacionalidades, a maioria solicitante de refúgio, esperam decisão do Ministério da Justiça brasileiro

O casal Abril Andreina Curvelo Palma, de 29 anos, e Manuel José Alvarez Varela, de 40, enfrenta uma situação insólita. Há dois meses, vive na ponte que liga o Brasil ao Peru, entre os municípios de Assis Brasil e Inãpari. Eles estavam no Peru e tentaram entrar no Brasil, mas foram impedidos pelas autoridades brasileiras porque, desde março, por causa da Covid-19, a entrada de estrangeiros por via terrestre está restrita. O problema é que eles também não podem retornar ao Peru, porque lá, também, a fronteira foi fechada para estrangeiros. Abril e Manuel não são os únicos a viverem esse drama. Entidades que atuam na área relatam que há pelo menos 32 pessoas em situação semelhante, vivendo na ponte ou em áreas próximas a ela à espera de que as fronteiras sejam reabertas.

O imbróglio começou em março, quando o governo brasileiro divulgou uma portaria restringindo a entrada de estrangeiros de diversas nacionalidades como medida para evitar o avanço da pandemia. A portaria fechou as fronteiras terrestres e aquaviárias e praticamente impediu a chegada de solicitantes de refúgio, sobretudo da Venezuela. Estrangeiros que violassem as determinações ficariam impedidos de solicitar refúgio no país.

SÓ POR VIA AÉREA

Há uma semana, outra portarialiberou a entrada de turistas por via aérea, mas manteve as restrições nas fronteiras terrestres e aquaviárias.

Os 32 imigrantes estão divididos em dois grupos. O de Abril e Manuel tem 14 pessoas, 13 venezuelanas e uma peruana. Neste grupo, que tentou entrar de forma regular no Brasil, mas foi impedido, há cinco crianças. O outro tem 18 pessoas eécompost opor 12 venezuelanos, cinco colombianos e um cubano, em situação ainda mais dramática. Eles tentaram entrar no Brasil pelo rio que divide os países, mas foram interceptados e deportados. Ao serem enviados de volta ao Peru, as autoridades peruanas também impediram a sua entrada.

A situação fez com que a Defensoria Pública da União (DPU) intercedesse e, desde o fim de julho, venha tentando obter autorização para a entrada do grupo. Segundo a DPU, os imigrantes do lado brasileiro estão recebendo assistência humanitária da Secretaria de Assistência Social de Assis Brasil e da Cáritas Diocesana.

Noca sodo primeiro grupo, a D PU fez um pedido administrativoao Ministério da Justiça requisitando a entrada em caráter excepcional dos 14 imigrantes. O pedido ainda não foi respondido pelo MJSP. Em relação ao segundo, iniciou uma ação judicial na quartafeira pedindo a suspensão da deportação, a entra dado grupoe a habilitação para que possam solicitar refúgio.

“(Esta é) uma situação kafkiana e desesperadora de deslocalização, verdadeiro estado de exceção individual contra um grupo de pessoas extremamente vulneráveis a quem o Brasil negou tratamento digno e humanitário ”, diz um trecho da açã oque tramita na Justiça Federal do Acre.

VIOLAÇÃO DAS LEIS

Na avaliação do defensor público federal João Chaves, as portarias violam as leis brasileiras sobre migração e refúgio, além de afrontarem acordos internacionais firmados pelo Estado brasileiro.

—Essas portarias são ilegais e violam acordos internacionais importantes. Não há previsão legal para que solicitantes de refúgios sejam impedidos de acessar esse direito por terem ingressado de forma irregular no país.

A coordenadora da organização de direitos humanos Conectas, Camila Asano, criticou a forma como o governo gerencia as restrições e liberações de entrada no Brasil em meio à pandemia:

— Apesar de turistas poderem entrar, solicitantes de refúgio que eventualmente cheguem a nossas fronteiras terrestres ou aquaviárias, depois de longas jornadas, seguem impedidos de pedir acolhimento. Difícil acreditar que as preocupações são sanitárias, e não uma tentativa de usar a pandemia para desmantelar direitos de refugiados no país.

O GLOBO enviou questionamentos ao MJSP, mas não recebeu resposta até o fechamento desta reportagem.