Correio braziliense, n. 20912, 25/08/2020. Saúde, p. 12

 

Caso de reinfecção pode impactar vacinas

Vilhena Soares 

25/08/2020

 

 

Cientistas chineses anunciaram o primeiro caso comprovado de reinfecção pelo novo coronavírus. Após episódios suspeitos de um segundo contágio pelo Sars-CoV-2, foram detectadas, pela primeira vez, provas genéticas de que um paciente já curado tinha, no organismo, outra cepa do causador da covid-19. O caso ocorreu em Hong Kong, quatro meses após o homem ter se livrado da doença. Especialistas e os responsáveis pela descoberta avaliam que ainda é cedo para tirar conclusões sobre o tema, mas ressaltam que as informações são importantes porque têm potencial de influenciar o desenvolvimento e a administração de vacinas. Há, por exemplo, a possibilidade de aplicação de mais doses em uma mesma pessoa e a de as fórmulas serem alteradas constantemente para não perderem a eficácia.

Os pesquisadores contam que o paciente, um homem de 33 anos, apresentou teste positivo, pela primeira vez, em 26 de março, após ter sentido uma série de sintomas, como febre, tosse, dor de cabeça e de garganta. Depois de curado, ele testou negativo para a infecção duas vezes. Mas em 15 de agosto, recebeu um novo diagnóstico. “Esse caso mostra que uma reinfecção pode ocorrer apenas alguns meses após a cura de uma primeira infecção”, informa comunicado emitido por especialistas do Departamento de Microbiologia da Universidade de Hong Kong (HKU). Segundo o grupo responsável pela descoberta, o estudo foi aceito, ontem, pela revista médica americana Clinical Infectious Diseases e aguarda publicação.

A reinfecção pelo novo coronavírus era uma suspeita entre cientistas, que esperavam um comportamento semelhante ao de outros patógenos da mesma família. “Nossos resultados sugerem que o Sars-CoV-2 pode persistir na população, como é o caso de outros coronavírus responsáveis por resfriados comuns, mesmo que os pacientes tenham adquirido imunidade”, enfatiza a equipe da HKU, que sinaliza possíveis efeitos do fenômeno constatado. O fenômeno, porém, acende o alerta quanto a novos desafios no enfrentamento da pandemia. “É improvável que a imunidade coletiva consiga eliminar o Sars-CoV-2, embora as seguintes infecções possam ser menos graves que a primeira, como foi o caso desse paciente”, alerta a equipe.

Fernando Bellissimo — professor da Universidade de São Paulo (USP) que, no início deste mês, anunciou um possível caso de reinfecção no Brasil — enfatiza que há possibilidade de impacto no desenvolvimento das vacinas. “O nosso temor é que a imunidade induzida pela infecção seja temporária, e isso vai fazer com que o efeito dos imunizantes dure um tempo menor do que se imaginava. Com base nisso, será necessário nos adaptar, aumentar o número de doses, para que seja anuais, ou semestrais, por exemplo”, explica.

Evidências distintas

A primeira suspeita de reinfecção surgiu na cidade de Boston, nos Estados Unidos, e foi descrita na revista American Journal of Emergency Medicine, em junho. Depois, veio o caso brasileiro. A equipe da USP relatou indícios de uma segunda infecção em uma técnica de enfermagem de 24 anos. A mulher sentiu sintomas no primeiro contágio, mas conseguiu se curar sem ter complicações. A segunda infecção foi registrada 50 dias depois, com ainda mais sintomas. Nos dois casos, o diagnóstico positivo foi obtido por meio do exame PCR, considerado padrão ouro para a detecção do vírus.

Fernando Bellissimo explica que o estudo chinês e o brasileiro mostram evidências diferentes de como é possível existir uma reinfecção do vírus. “No nosso caso, não tivemos a oportunidade de fazer o mapeamento genético no primeiro teste positivo porque a amostra foi descartada. Isso nos impediu de comparar as cepas”, explica. “A nossa pesquisa tem mais evidências epidemiológicas e laboratoriais. Conseguimos observar os sintomas nas duas infecções da paciente, por exemplo. Mas a ciência moderna valoriza mais esses dados moleculares.”

A USP segue com estudos sobre reinfecção. “Temos, no momento, oito casos suspeitos e estamos trabalhando para entendê-los e esclarecer se as suspeitas se confirmam”, conta o pesquisador. Outra diferença com o estudo brasileiro é que, no caso chinês, o paciente não apresentou sintomas na segunda infecção: a doença só foi descoberta por meio de um teste de rastreamento feito no aeroporto de Hong Kong, quando ele voltava da Espanha, com parada no Reino Unido.

“As análises comprovam que o primeiro patógeno era de origem asiática, e o segundo, de origem europeia, o que entra em concordância com a viagem que o paciente fez”, avalia Werciley Júnior, infectologista e chefe da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Santa Lúcia, em Brasília. O médico também chama a atenção para o uso de análise genética pelos cientistas chineses. “É a tecnologia que permite comprovar, sem dúvidas, que o paciente contraiu duas cepas diferentes. As pesquisas anteriores mostraram apenas casos suspeitos, já que esses dados não foram disponibilizados. Isso é até normal, pois não fazemos esse tipo de análise mais detalhada no cotidiano”, afirma.

Mais estudos

Após a divulgação do estudo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que é “possível” que o caso em Hong Kong seja o primeiro confirmado de reinfecção. “Acho que é importante colocar isso em contexto. Havia mais de 24 milhões de relatos até agora, e precisamos olhar para isso em nível de população. É importante documentar esses dados, e, em países que podem fazer isso, que o sequenciamento seja feito. Isso ajudaria muito. Mas não podemos pular para nenhuma conclusão, mesmo que esse seja o primeiro caso documentado de reinfecção”, ponderou Maria van Kerkhove, chefe técnica da agência.

Jeffrey Barrett, pesquisador do Instituto Wellcome Sanger, no Reino Unido, também acredita que mais pesquisas são necessárias. “É difícil tirar conclusões firmes de um único caso. Considerando o número de infecções em todo o mundo, ver um caso de reinfecção não é tão surpreendente”, comentou à agência France-Presse (AFP) de notícias. Para o especialista, os dados vistos reforçam uma medida que vem sendo pensada por cientistas: a necessidade de todas as pessoas, mesmo as que já tiveram a doença, se vacinarem para a covid-19 quanto essa opção estiver disponível. “Como a imunidade pode não durar muito após uma infecção, a vacinação deve ser considerada até mesmo para pessoas que já foram infectadas”, frisa.