Correio braziliense, n. 20912, 25/08/2020. Diversão & Arte, p. 22

 

Liberdade de expressão em risco

Adriana Izel 

Nahima Maciel 

Roberta Pinheiro 

25/08/2020

 

 

Uma semana após a aprovação e a série de debates levantados na sociedade civil e na comunidade artística, o projeto de lei 1.958/18, de autoria do deputado e presidente da Câmara Legislativa, Rafael Prudente (MDB), que proíbe exposições culturais e artísticas com “teor pornográfico ou que atentem aos símbolos religiosos no espaços públicos do Distrito Federal”, volta a ser debatido na Casa. Tanto o autor da proposta quanto outros parlamentares apresentarão emendas ao projeto que serão discutidas na tarde de hoje.

De autoria do distrital Fábio Felix (PSol) e assinado por mais três deputados, Arlete Sampaio (PT), Chico Vigilante (PT) e Reginaldo Veras (PDT), todos contrários ao PL, um substitutivo foi apresentado na semana passada e deve entrar na pauta de hoje. O texto reforça a liberdade de expressão prevista no artigo 5º da Constituição da República e a livre produção artística, além dos critérios vigentes no país em relação à classificação indicativa, assuntos que permeiam o projeto de lei.

O substitutivo dispõe sobre a autoclassificação indicativa em exibições e apresentações culturais no DF. “Essa é uma proposta ruim para a cidade (o Projeto de Lei nº 1.958/18), além de inconstitucional, pela Lei Orgânica e pela Constituição Brasileira. Vamos travar essa batalha para flexibilizar o projeto. Até agora, a mobilização (da sociedade civil) teve resultado”, destaca. “Muita gente se movimentou contra o projeto de lei. Esse é um assunto equivocado e que ataca a liberdade de expressão e das manifestações culturais. Isso aconteceu em tantos momentos e não pode voltar a acontecer. Essa mobilização é uma vitória”, avalia Félix. O deputado diz que, caso seja necessário após a apreciação hoje, a oposição pode questionar o projeto de lei na Justiça.

O autor do PL, Rafael Prudente, trabalha desde ontem em uma emenda que será apresentada até as 12h de hoje. Segundo a assessoria de imprensa do distrital, a intenção é alterar parte do texto, mas sem recuar do posicionamento. A assessoria explicou que o objetivo é aperfeiçoar os pontos do projeto de lei para evidenciar que a proposta, “não interfere em obras de arte e está associada à proibição de manifestações que associem ao ato sexual e que exponha os símbolos religiosos de maneira vulgar em praças públicas sem controle de acesso”.

Inconstitucional

Para Afonso Belice, advogado e assessor legislativo na Câmara dos Deputados, é uma surpresa o texto ter passado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na semana passada. “Infelizmente, na própria justificativa do projeto, eles fazem referência ao Inciso IX do Artigo 5 da Constituição Federal, que é a livre expressão da atividade artística, mas ele (a proposta) fala isso para apresentar um projeto que fere exatamente este dispositivo constitucional”.

“Fora isso, há outro dispositivo constitucional que ele fere: parágrafo segundo, Artigo 220, segundo o qual é vedada toda e qualquer censura de natureza artística. Esse projeto de lei, a meu ver, é uma censura aos artistas e tem algo paradoxal. No projeto, ele fala de nu artístico, fala de religião, mas como ficam aqueles lindos desenhos com nu artístico da Capela Sistina (em Roma)? Se foram replicados aqui no DF, não vão poder estar nas ruas da capital, não vão poder ser expostos no DF. Fere a Constituição Federal e o bom senso”, argumentou. O advogado também explicou sobre a possibilidade de diversos entendimentos no que seria “espaços públicos”. “É uma expressão que dá uma abertura muito grande para interpretação”, concluiu Belice.

Manifestação

Desde a semana passada, quando foi aprovado em primeira instância o projeto de lei, a classe artística se mobiliza contra a proposta. A Frente Unificada da Cultura do DF criou um abaixo-assinado na internet se posicionando contra o PL e em favor da liberdade artística e criativa. No texto, a entidade afirma que a proposta dos parlamentares tem como objetivo “criminalizar, perseguir e censurar o fazer artístico”.

Artista plástico e professor do IDA/UnB, que, eventualmente, aborda a nudez em instalações muito delicadas e contundentes, Gê Orthof acha difícil acreditar que parlamentares estejam se debruçando sobre um projeto de lei como o 1.958/18. “Meu trabalho tem uns desenhos que são minipeladinhos, mas eles não informam quantos centímetros de nudez serão permitidos ou se toda nudez será proibida. Tão difícil de acreditar”, diz. “Fiquei pensando nos pecados capitais, a cobiça é o pecado secreto, único invisível, que não pode ser julgado objetivamente, e fico pensando se é um caso de uma cobiça desse povo sobre a felicidade dos outros, um pecado da alma mesmo, de ter uma vida tão infeliz que não suporta imaginar a felicidade dos outros, uma coisa muito triste.” Para Orthof, se projetos como esse fossem aprovados, seria preciso “fechar metade do mundo”, incluindo a Capela Sistina, do Vaticano, pintada por Michelangelo no século 16 e repleta de nudez divina. “O que eles estão vetando não é o sexo, é o humano, é um ódio ao humano. Se a gente assinar embaixo desta lei, estaremos nos destituindo de nossa essência, porque o humano sem a nudez, sem o sexo, sem o divino, sem a utopia, a distopia, ele não existe. Qual a finalidade disso?”, questiona o artista.

A artista plástica Clarice Gonçalves lamentou a aprovação do texto em primeiro turno. Ela diz que o projeto de lei limita e objetifica os corpos. “É muito triste ver essa busca de autolimitação. Essa é uma declaração de objetificação de todas as imagens de corpos. Estão fazendo isso contra a arte. É uma revisitação da ideia algorítmica de robô de detectar a nudez. Toda nudez será castigada, e é propriedade do estado. E o Estado segue não punindo os estupradores, não punindo os reais vilões que estão à solta”, define.

A pintora, que tem trabalhos que refletem à figura feminina, disse que o PL não afetará o modo dela de fazer arte. “Vai só instigar ainda mais todos os questionamentos que tenho desde sempre em relação ao corpo, à sexualidade, à maternidade, à inocência, à liberdade, a tudo.... Estão lidando com a própria ideia absurda de criacionismo. É uma declaração de fragilidade. É uma negação da realidade”, completa.

Sara Seilert, diretora interina do Museu Nacional da República, é contra o projeto e, ao Correio, destacou pontos do PL os quais considera equivocados. “A primeira pergunta que nós devemos fazer é se os proponentes desse texto frequentam exposições de arte. Onde há pornografia nas obras? Esse termo está descontextualizado quando se trata de arte. Outra pergunta: esses poucos políticos ditarão o que toda a população do DF poderá ver?”, questiona ao fazer referência ao primeiro artigo do projeto de lei. “Quanto à classificação indicativa, é uma medida que já é respeitada nos espaços expositivos”, completa sobre o artigo, que diz que “ficam obrigados os estabelecimentos públicos e privados que abriguem exposições a fixarem placa indicativa contendo advertência para o conteúdo da exposição bem como a faixa etária à qual se destina”.

Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, responsável por um dos principais prêmios da arte contemporânea do país, declarou que o PL é lamentável por ferir a liberdade de expressão e ainda criticou o fato de ter sido discutido em meio à pandemia do novo coronavírus, a qual o país continua enfrentando. “Primeiro, no meio de tanto problema que vivemos no Brasil e no mundo, certamente essa não é uma prioridade. Dito isso, cabe acrescentar que não há e nunca houve uma agenda pornográfica em nossas instituições culturais. Muito pelo contrário. Segundo, vejo que há uma confusão entre nudez e pornografia. A história da arte, sem a nudez, seria bem mais pobre, do ponto de vista iconográfico e expressivo. Por fim, acima de tudo, não podemos pôr em risco, em hipótese alguma, a liberdade de expressão”, comenta.