Valor econômico, v. 21, n. 5081, 08/09/2020. Política, p. A6

 

Guedes e Marinho têm a relação mais tensa do governo

Maria Cristina Fernandes

César Felício

08/09/2020

 

 

Conflitos começaram na derrota do modelo de capitalização para a Previdência

Um caso ocorrido há 15 anos, quando era vereador em Natal, tornou Rogério Marinho alvo de uma reportagem da “Veja”. A revista mencionou ação civil de improbidade ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte depois de denúncia de funcionários fantasmas da Câmara de Vereadores na capital do Estado, à época presidida pelo atual ministro do Desenvolvimento Regional.

A revista cita uma intimação para depoimento que Marinho teria recebido no mês passado como o desdobramento mais recente do processo. O advogado de Marinho negou as acusações e disse que seu cliente as esclareceria à justiça.

Sua publicação coincide com o auge de seu antagonismo com o ministro da Economia. Na mesma edição da revista, Paulo Guedes é descrito como tendo retomado o protagonismo no governo a partir da reforma administrativa.

Os desentendimentos entre Marinho e Guedes, iniciados na negociação da reforma da Previdência, encabeçada pelo então secretário, se agudizaram depois de sua posse no Ministério do Desenvolvimento Regional em fevereiro deste ano.

Marinho foi apresentado a Guedes pelo presidente da República, de quem foi colega na Câmara dos Deputados. Apoiador de Geraldo Alckmin (PSDB), em 2018, o ministro foi sondado, ainda na campanha, por Bolsonaro, para compor o governo.

Num governo bolsonarista, o destino natural do parlamentar que fora derrotado na recondução para a Câmara depois de liderar a reforma trabalhista na gestão Michel Temer, seria a Pasta do Trabalho. Com sua absorção pelo superministério da Economia, porém, só haveria espaço para Marinho no governo se avalizado por Guedes.

Foram quatro entrevistas até a confirmação no cargo, acrescido, a pedido do novo secretário, da Previdência, cuja modelo de reforma do ministro era a capitalização, à la Chile. O tema era o predileto da catequese à qual Guedes submetia aqueles a quem encontrava pela primeira vez e também os secretários com quem convivia diariamente. Alguns passaram a ir às preleções com fone de ouvido.

A segunda viria com a Medida Provisória 905, da carteira verde-amarela, que se propunha a desonerar o empregador em até 30% dos custos de contratação. Para compensar o Tesouro, surgiu a ideia de taxar o seguro desemprego. Guedes revelaria, numa audiência pública no Congresso, que a ideia teria partido de Marinho. O ministro do Desenvolvimento Regional nunca o desmentiu publicamente, mas já se queixou a assessores de que sua ideia inicial era a de acabar com o desconto para aquisição de automóveis por portadores de deficiência. Teria sido por insistência do ministro da Economia que o seguro-desemprego entrara na roda.

Marinho ainda enfrentou, no cargo, a ofensiva dos aliados mais radicais de Guedes, como ex-secretário de desestatização, Salim Mattar, que costumava se queixar do excesso de fiscalização sobre os empregadores.  Assessores chegaram a presenciar a ofensiva para que fosse tirado o nome “social” do “e-social”, cadastro digital que todo empregador tem que fazer para registrar as obrigações trabalhistas e previdenciárias dos empregados.

Quando a MP foi revogada, Marinho já deixara a Secretaria do Trabalho e da Previdência do Ministério da Economia para assumir o Desenvolvimento Regional, com o deslocamento de Gustavo Canuto para a Dataprev. No cargo, Marinho continuou a cultivar a relação com os ministros militares de quem se aproximou desde a reforma da carreira das Forças Armadas. Cabalou aliados para a ideia de que o Estado deveria ser reduzido para aumentar o investimento público e não para abater dívida.

Pouco mais de um mês depois de sua posse, acontecia a primeira morte de um brasileiro pela covid-19. E Marinho, articulado com os ministros da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e da Casa Civil, Walter Braga Netto, conseguiu negociar com o Congresso a inclusão dos “efeitos sociais e econômicos” da pandemia entre aqueles que poderiam vir a ser minorados pelos recursos extras do chamado “Orçamento de guerra”.

Começaria ali outro capítulo da disputa que, àquela altura, já estava estabelecida entre o ministro da Economia e seu ex-secretário. Quando Guedes, que é do grupo de risco da covid-19, resolveu passar duas semanas no Rio, Marinho foi chamado pelo presidente ao Palácio do Planalto e ouviu dele a preocupação com o impacto da pandemia sobre ambulantes e trabalhadores de bares e restaurantes.

Marinho levou o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Paulo Solmucci, para conversar com Bolsonaro. Ele teria dito ao presidente que o setor precisava de ajuda para continuar a pagar salário e evitar demissões em massa. Como Guedes não pôde comparecer, Bolsonaro resolveu levar o empresário até o Ministério da Economia.

Sentou Solmucci ao lado de Guedes e pediu que ele expusesse o problema. O ministro manteve a posição, sustentada até ali, de que não cabia ao governo pagar salário de empresa alguma. O presidente, segundo relato de interlocutores da conversa, os observava de uma cadeira afastada da mesa e só interferia para saber se Solmucci estava satisfeito. Foi dali que nasceu a MP 936, da redução de jornada e salário com complementação do Tesouro para os de mais baixos vencimentos.

Marinho, que preferiu não acompanhar Bolsonaro e Solmucci, acabou sendo responsabilizado por Guedes pela pressão. “Fui apunhalado pelas costas”, disse, dias depois, numa reunião com o presidente e o ministro do Desenvolvimento Regional. “Amarro o burro onde o dono manda”, rebateu Marinho. “Foi o presidente que pediu minha ajuda”.

Na reunião do dia 22 de abril, três semanas depois de editada aquela MP, tornou-se público aquilo que toda a Esplanada já sabia. O ministro do Desenvolvimento Regional era o único a enfrentar Guedes abertamente. “Não podemos começar uma reunião com verdades absolutas e dogmas estabelecidos há cem anos”, disse Marinho. “Eu li Keynes três vezes no original antes de chegar a Chicago. Então pra mim não tem música, não tem dogma, não tem blá-blá-blá”, rebateu Guedes.

A escalada de confronto não parou até o conteúdo da reunião ser tornado público, um mês depois. A partir dali, os assessores do ministro do Desenvolvimento Regional passaram a colecionar os adjetivos que Guedes lhe atribui - de “fura-teto” a “desonesto”, passando por “traidor” e “eleitoreiro”.

A Marinho é atribuída a ambição pelo governo do Rio Grande do Norte em 2022. A partir de junho, a suposta pretensão ganhou um concorrente interno, o deputado federal pelo PSD potiguar, Fábio Faria, empossado ministro das Comunicações com a ambição de se cacifar para ocupar a cadeira que foi de seu pai, Robinson Faria, até a posse da governadora Fátima Bezerra (PT) em 2019.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia opera para aprofundar o conflito. A pretexto de defender a pauta fiscalista de Guedes, o deputado passou a questionar projetos e programas que dariam competitividade a Bolsonaro em 2022.

Até que, em julho, num encontro no Palácio do Planalto, Marinho, depois de sucessivamente desautorizado em suas negociações com o TCU e com o Congresso por Guedes, o atacou, na presença de Bolsonaro. Disse que Rodrigo Maia, "o político mais brilhante de sua geração", estava fazendo Guedes de bobo - versão para consumo público de um entrevero abaixo da linha da cintura.

Marinho tem rebatido a acusação de que fere normas fiscais ao deixar restos a pagar do Orçamento de guerra para viabilizar obras em 2021, dizendo que quita até hoje restos a pagar de 2011. Reclama ainda que Estados e municípios não usam o dinheiro da pandemia exclusivamente para a saúde, enquanto o governo federal se deixa ameaçar pelo TCU. Em todos esses argumentos, porém, se vê desautorizado pelo ministro da Economia.

Ao tirar o colega que tem traquejo de negociação política do jogo, dizem parlamentares e técnicos que acompanham a peleja, Guedes acaba ficando à mercê da avidez parlamentar. Para arrancar “x” de redução da máquina, deixa outro “x” empenhado no Congresso.

 Nas contas de quem manteve um pé no governo anterior e hoje acompanha de perto a gestão Bolsonaro, negociações do ministro da Economia com os parlamentares já teriam custado quatro vezes o que pesaram sobre o erário as tratativas de Michel Temer para evitar o impeachment. Um exemplo disso foi o Fundeb, quando o Congresso, que já se conformara com uma participação da União em 20%, acabou garfando o erário nacional em 23%.

À frente de uma pasta que tem obras e ações em 5.270 municípios, ou seja, 94% do total, Marinho se vale de inaugurações para convidar parlamentares distantes do Palácio do Planalto, prestigiá-los junto a seus eleitores e, em troca, conseguir, por exemplo, que se ausentem em votações importantes para o governo como a dos vetos ao marco legal do saneamento.

Em outras frentes de batalha, como a da privatização, tem-se queixado da estratégia de se anunciar a venda de empresas em bloco, o que une adversários contra o governo. Tem encontrado, separadamente, senadores próximos a acionistas de empresas de economia mista, como a Eletrobras, e os convencido de que a elevação do preço de venda da companhia pode vir a acomodar interesses que se veem afetados pela operação.

É pela negociação com os parlamentares que abrigam, em suas emendas, projetos de sua pasta, que Marinho tem conseguido destravar os investimentos do Desenvolvimento Regional. No Orçamento de 2021, o ministério terá 14% a menos, uma marca quase tão ruim quanto o da Infraestrutura, garfado em 20%.

Nos Ministério do Desenvolvimento Regional a percepção é de que se não houver arregimentação para se manter o salário mínimo sem reajuste no Orçamento e para se aprovar a PEC emergencial,  que impõe um gatilho nos gastos de custeio, o governo “vai colapsar”. Procurados, os ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho, não quiseram se pronunciar.