Correio braziliense, n. 20914, 27/08/2020. Mundo, p. 10

 

Guerra à "anarquia"

Rodrigo Craveiro 

27/08/2020

 

 

Sob o pretexto de restaurar a lei e a ordem e combater a “anarquia”, o presidente norte-americano, Donald Trump, anunciou o envio de soldados da Guarda Nacional a Kenosha, no sudeste de Wisconsin. Desde segunda-feira, a cidade, de pouco mais de 150 mil habitantes, é palco de violentos protestos, desencadeados pela ação policial que deixou Jacob Blake, um cidadão negro de 29 anos, em estado grave. “Não vamos tolerar saques, incêndios, violência e ilegalidade nas ruas dos EUA. Minha equipe acabou de falar, por telefone, com o governador (Tony) Evers (democrata), que aceitou a ajuda federal”, escreveu Trump no Twitter. Foi a primeira reação do republicano desde domingo, quando Blake foi baleado sete vezes nas costas por policiais. Hoje, Trump discursa na Convenção Nacional Republicana, para aceitar a indicação do partido à reeleição.

Pouco antes da zero hora de ontem (hora local), dois homens  — um de 36 anos e outro de 26 — foram mortos a tiros em uma manifestação contra o racismo. A polícia de Antioch, no vizinho estado de Illinois, anunciou a prisão de um adolescente de 17 anos, o qual foi acusado de homicídio de primeiro grau em Kenosha.

Até o fechamento desta edição, Blake seguia hospitalizado em estado grave e sem movimentos da cintura para baixo. As balas destruíram parte da medula espinhal e causaram lesões nos rins, no fígado e nos intestinos. Os policiais envolvidos na abordagem foram removidos temporariamente para serviços administrativos, mas seguem em liberdade. O candidato democrata à Casa Branca, Joe Biden, telefonou para familiares de Blake e prometeu-lhes justiça. “O que vi no vídeo me deixou doente. Uma vez mais, um homem negro, Jacob Blake, foi baleado pela polícia, em plena luz do dia, com o mundo inteiro assistindo. Falei com a mãe, com o pai e com a irmã de Jacob, e com outros membros da família, e eu disse a eles que a justiça deve e será feita”, declarou Biden, em alusão ao vídeo feito por Raysean White (Leia entrevista), vizinho de Blake. “Coloquem-se no lugar de cada pai e mãe negros neste país e se perguntem: ‘É isso o que queremos para a América?.”

Biden defendeu protestos contra a brutalidade como “um direito” e como “algo absolutamente necessário”. “Mas, queimar comunidades não é protestar, é violência desnecessária. Violência que coloca vidas em risco e destrói negócios que servem à comunidade. Isso é errado!”, advertiu.

Tonya Barton, prima de Blake, contou ao Correio que “a família está verdadeiramente devastada”. “Nós exigimos justiça não apenas para Jacob, mas para cada família que foi colocada em situação parecida. Pedimos a todos que sigam em oração por Jacob, enquanto ele se recupera não apenas fisicamente, mas também  emocionalmente”, disse.

Uma das testemunhas-chave da tentativa de assassinato contra Blake, Raysean White disse ao Correio que apoia a presença da Guarda Nacional em Kenosha. “O motivo da mobilização militar é algo ruim. No entanto, ela precisa estar aqui para termos a certeza de que todos ficaremos seguros”, comentou. “A Guarda Nacional deveria ter patrulhado as ruas de minha cidade na noite passada (terça-feira), quando um jovem de 17 anos matou duas pessoas e feriu gravemente outra. Precisamos retomar o controle de Kenosha.” Vídeos divulgados pela internet, na noite de terça-feira, mostravam pessoas correndo pelas ruas de Kenosha, enquanto tiros eram ouvidos. Em uma das gravações, era possível ver um homem gravemente ferido na cabeça. Outro homem aparece caído no chão, com um rifle na mão.

Em entrevista ao Correio, Pamela Oliver — professora de sociologia da Universidade de Wisconsin-Madison — explicou que supremacistas brancos e apoiadores de Trump aproveitam-se da situação. “Considero incomum e preocupante o fato de Trump tentar usar a Guarda Nacional para punir inimigos políticos e aumentar os confrontos em locais cujos governadores são democratas”, analisou. “Também é preocupante a presença de vigilantes brancos de extrema-direita, encorajados pela polícia e por políticos. Ontem (terça-feira) à noite, um grupo de vigilantes brancos armados veio a Kenosha para intimidar os manifestantes. A polícia empurrou os manifestantes para um confronto com os forasteiros.”

NBA

Em ato contra a ação policial, a equipe do Milwaukee Bucks boicotou o quinto jogo dos playoffs da NBA, a liga de basquete profissional dos Estados Unidos. Além do adiamento da disputa entre Bucks e Orlando Magics, outras duas partidas foram suspensas: Houston Rockets vs Oklahoma City Thunder e Los Angeles Lakers vs Portland Trail Blazers.

Ben Crump, ativista dos direitos civis e advogado da família de Blake, destacou a decisão do Bucks como “um gesto poderoso”. “Atletas e celebridades têm vozes poderosas. E quando eles levantam suas vozes para amplificar os grandes temas da atualidade, eles ajudam-nos a falar a verdade ao poder e a motivar as mudanças positivas que desejamos ver no mundo”, disse. LeBron James, estrela do Lakers, atacou Trump e a violência policial. “F... este homem!!! Nós exigimos justiça. Farto disso!”, escreveu no Twitter.