Correio braziliense, n. 20916, 29/08/2020. Política, p. 2

 

O ocaso meteórico de um governador

Renato Souza 

Sarah Teófilo

Ingrid Soares

29/08/2020

 

 

Investigações sobre desvios milionários em recursos públicos, destinados à educação e à saúde do Rio de Janeiro, levaram o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a afastar do cargo, por seis meses, o governador do estado, Wilson Witzel (PSC). A decisão da Corte atinge, de maneiras distintas, toda a cúpula do Executivo fluminense, já que o vice-governador Cláudio Castro e o presidente da Assembleia Legislativa (Alerj), André Ceciliano, também são alvo das apurações. Sete pessoas foram presas, entre elas, o Pastor Everaldo (PSC), personagem importante da política do Rio e ex-candidato à Presidência da República.

Apesar de ter um mandado de busca e apreensão expedido em seu nome, Cláudio Castro não foi afastado e assumiu o comando do governo estadual no meio da tarde de ontem. Ele estava em Brasília quando soube da notícia e voltou ao Rio para se reunir com a cúpula da segurança.

As diligências, conduzidas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), apontam que Witzel é o chefe de um esquema de corrupção investigado pela Operação Tris in Idem. Além de ser alvo de buscas, o governador e os demais foram denunciados à Justiça. As ações foram autorizadas pelo ministro Benedito Gonçalves, do STJ. Os procuradores pediram a prisão de Witzel, mas a solicitação foi negada. “O grupo criminoso agiu e continua agindo, desviando e lavando recursos em plena pandemia da covid-19, sacrificando a saúde e mesmo a vida de milhares de pessoas, em total desprezo com o senso mínimo de humanidade e dignidade”, diz trecho da decisão do ministro.

A Polícia Federal cumpriu mandados no Palácio Laranjeiras, no Palácio Guanabara e na residência do vice. A primeira-dama do Rio, Helena Witzel, também está entre os denunciados.

O afastamento de Witzel é outro capítulo da falência do poder público em solo fluminense. Os últimos seis governadores foram alvos de investigações por corrupção e a violência impacta diariamente os cidadãos, sem que se chegue a uma solução para combater a criminalidade. Além dos problemas políticos e sociais, a pandemia do novo coronavírus avança no estado. Até a noite de ontem, os hospitais da região haviam registrado 15.859 mil óbitos e 220 mil infecções pela covid-19.

Ataque

Em pronunciamento ontem — que pode ter sido o último da gestão dele, a depender do caminho trilhado pelo caso na Justiça —, Witzel defendeu-se atacando. Ele disse ser vítima de um ato político e acusou a subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo, braço direito do procurador-geral da República, Augusto Aras, de influenciar na decisão do ministro Benedito Gonçalves. Ele afirmou que Lindôra “está se especializando em perseguir governadores, desestabilizar estados, com investigações rasas, buscas e apreensões preocupantes”. “Eu, assim como outros governadores, estamos sendo vítimas de uso político”, frisou.

O chefe do Executivo do Rio afirmou que Lindôra é próxima da família , citando especificamente o senador Flávio (Republicanos-RJ), e insinuou que o afastamento se dá por vontade do presidente Jair que, segundo ele, já declarou que quer o Rio de Janeiro. “Diferentemente do que ele imagina, aqui a Polícia Civil é independente, o Ministério Público é independente”, destacou.

O político insinuou, ainda, que o afastamento dele ocorre pelo fato de que, no fim do ano, teria a prerrogativa de escolher o novo procurador-geral da Justiça, que comanda o Ministério Público estadual. O órgão está investigando Flávio no âmbito do esquema de rachadinha — desvio de salário de servidores da Alerj, na época em que o parlamentar era deputado estadual.

Impeachment

Horas após o afastamento, Witzel sofreu outro revés. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a retomada do processo de impeachment do governador pela Alerj. Ele revogou uma liminar, concedida em agosto pelo presidente da Corte, Dias Toffoli, que determinava a criação de uma comissão especial para tratar do assunto.

Na decisão, Moraes entendeu que não houve ilegalidade na formação da primeira comissão. O processo aberto na Alerj tem como fundamento suposto recebimento de propina pelo governo, por meio de fraudes em contratos de hospitais de campanha, mesmo caso que está em tramitação no STJ.

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A atuação da primeira-dama 

Jorge Vasconcellos 

29/08/2020

 

 

De advogada discreta a um dos pivôs do mais novo escândalo de corrupção no governo do Rio de Janeiro. Assim é a trajetória da primeira-dama do estado, Helena Witzel, conforme apontam investigações da Lava-Jato. Segundo procuradores da força-tarefa, o escritório de advocacia dela era usado para lavar dinheiro do esquema de corrupção liderado pelo governador Wilson Witzel (PSC), afastado do cargo, ontem, por ordem do ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Helena Witzel foi um dos alvos da operação de busca e apreensão realizada dentro do inquérito que investiga irregularidades em contratos firmados pelo governo estadual para ações de combate à pandemia.

Segundo as investigações, a atuação de Helena como advogada é recente. Após a posse do marido como governador, em janeiro de 2019, os casos corriqueiros, no escritório de advocacia, deram lugar a contratos vultosos, de novos clientes, entre os quais empresas fornecedoras do governo estadual. De acordo com procuradores, o local passou a “operacionalizar a prática de corrupção e posterior lavagem de capitais”.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) sustenta que as propinas pagas no esquema eram disfarçadas em contratos assinados pelas empresas com o escritório de advocacia. Dessa forma, segundo as investigações, o governador foi o verdadeiro destinatário de R$ 554 mil, relativos a quatro contratos e pagos entre 13 de agosto de 2019 e maio de 2020 — cerca de R$ 15 mil mensais de cada uma das empresas. A força-tarefa identificou, pelo menos, um repasse do escritório para Wilson Witzel, no valor de R$ 74 mil.

E-mail

As investigações apontam que, entre os pagamentos mensais recebidos pelo escritório de Helena, estão R$ 15 mil da DPAD Serviços Diagnósticos LTDA., pagos desde agosto do ano passado. O total repassado foi de R$ 105 mil. A empresa tem contrato com o governo fluminense.

Um e-mail escrito por Witzel, apreendido pela PGR, orienta os interessados a redigir o contrato com o escritório de Helena. Chamou também a atenção dos procuradores a atuação da primeira-dama em um processo de execução fiscal da família do médico Gothardo Lopes Netto, ex-prefeito de Volta Redonda e ex-deputado estadual. A família é dona do Hospital Infantil e Maternidade Jardim Amália Ltda (Hinja), maior unidade de saúde privada do município.

O processo, que tramita na Justiça Federal de Volta Redonda, já tinha como advogado Lucas Tristão, ligado ao esquema de corrupção — segundo as investigações —, porém, ao longo da tramitação do caso, Helena entrou com uma petição para informar que passaria a defender o hospital. Conforme as apurações, a partir daí, o escritório passou a receber os R$ 15 mil mensais apenas por esse serviço.

As acusações

Confira os principais pontos da denúncia da PGR contra Wilson Witzel

» Delator Edmar Santos, ex-secretário de Saúde do Rio, disse que havia uma organização criminosa no Rio encabeçada por Witzel, e com três grupos, sendo dois deles liderados pelo empresário Mário Peixoto e outro pelo Pastor Everaldo (e mais duas pessoas).

De 24/3/2020 a 19/5/2020

» Witzel, com o auxílio da primeira-dama, Helena Witzel, solicitou e recebeu vantagem indevida no valor de R$ 280 mil ofertada pelo empresário Gothardo Lopes Netto, ex-prefeito de Volta Redonda;

» A denúncia fala que o valor corresponde a 5,2% do total recebido no ano pela empresa de Gothardo pelo governo (R$ 5,3 milhões), sendo a proporção compatível ao que o delator narrou como sendo o percentual de propina destinado ao governador;

» O objetivo era ter facilidades e proteção em relação a suas empresas;

» Witzel fez dois atos de ofício que beneficiou empresa de Gothardo e a escolha de uma OS, cujo sócio oculto é Gothardo, para gerir um hospital;

» Dinheiro foi lavado por Witzel e Gothardo com o auxílio de Helena por meio da confecção de contrato simulado entre o Hospital Jardim Amália (Hinja) e o escritório de advocacia de Helena, com emissão de notas fiscais ideologicamente falsas.

De 13/8/2019 a 17/4/2020

» Witzel, com o auxílio de Helena e Lucas Tristão (ex-secretário de Desenvolvimento Econômico), solicitou e recebeu vantagem indevida no valor de R$ 274,2 mil, paga pelo empresário Mário Peixoto (com o auxílio de mais quatro pessoas);

» O objetivo era obter facilidades e proteção em relação aos contratos de suas empresas com o estado. Em razão das vantagens indevidas, Witzel praticou, em favor de Peixoto, ao menos um ato de ofício revogando a desqualificação da organização social Instituto Unir Saúde, que tem como sócio oculto Mário Peixoto. OS passou a estar novamente habilitada a celebrar contratos com o estado.

» Soma: R$ 554,2 mil

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O Pastor Everaldo e a caixinha de proprinas 

29/08/2020

 

 

Preso ontem, o pastor Everaldo Dias Pereira organizou uma “caixinha” abastecida por propinas que era dividida com o governador do Rio, Wilson Witzel. Além disso, ele também tentou “alinhar discurso” com o delator e ex-secretário de Saúde do Rio Edmar Pereira para obstruir as investigações.

As acusações constam na decisão do ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, que autorizou a prisão de Everaldo, e na representação enviada pela subprocuradora-geral Lindôra Araújo à Corte. Segundo as investigações, o pastor lidera “um dos grupos criminosos influentes nos Poderes Executivo e Legislativo do Rio de Janeiro”.

“À luz dos elementos colhidos até o momento, observa-se que Pastor Everaldo instituiu uma espécie de ‘caixinha única’ para pagamentos de vantagens indevidas a agentes públicos da complexa organização criminosa sob investigação, a partir do direcionamento de contratações de organizações sociais e na cobrança de um ‘pedágio’ sobre a destinação dos ‘restos a pagar’ aos fornecedores, criando uma típica estrutura sofisticada e perene e com detalhada divisão de tarefas”, apontam os investigadores.

Para “administrar” a caixinha, Everaldo teria criado uma “típica estrutura ramificada de organização criminosa, com divisão de tarefas entre os demais integrantes do grupo”. A divisão dos repasses foi instituída da seguinte forma: 30% dos valores seriam para Edmar Santos, 20% para Witzel, 20% para o próprio Pastor Everaldo, 15% para Edson da Silva Torres e 15% para Victor Hugo Barroso, apontados respectivamente como operadores administrativo e financeiro do pastor.

O Pastor Everaldo, segundo a Procuradoria, também tentou “alinhar o discurso” com Edmar Santos após sua saída do governo, em maio deste ano, em meio às denúncias de fraudes na licitação para a compra de respiradores no valor de R$ 3,9 milhões. O objetivo do diálogo, segundo o MPF, seria criar uma versão que justificasse os atos ilícitos praticados pela organização criminosa.

“Por volta do dia 19 e 20 de maio, o colaborador foi chamado à sede do PSC por Pastor Everaldo e, lá chegando, também estava presente Victor Hugo. Eles estavam preocupados com uma possível delação de Gabriell Neves, que já estava preso naquele momento”, afirma a Procuradoria, citando delação de Edmar Santos. “Pastor Everaldo informou a necessidade de um alinhamento dos discursos, indicando, por exemplo, a criação de um álibi para o colaborador historiar a sua relação com Edson Torres, entre outras narrativas.”

Edson Torres era o operador administrativo de Everaldo, segundo o MPF, e operava empresa chefiada por um ‘laranja’ para obter ganhos ilícitos para o pastor. Um dos contratos teria sido firmado com o DER/RJ.

Dois filhos de Everaldo, Filipe e Laércio Pereira, também presos ontem, foram acusados de integrar o esquema por meio de “várias pessoas jurídicas e sociedades com outros membros da organização”. Outra transação suspeita envolvendo a família do pastor é referente à compra de um imóvel por R$ 400 mil quando avaliação fiscal apontava que o valor real seria três vezes superior. Parte do pagamento, cerca de R$ 35 mil, teria sido feito em espécie.

Em nota, Everaldo afirmou que “sempre esteve à disposição de todas as autoridades e reitera sua confiança na Justiça”.