O globo, n. 31780, 10/08/2020. Sociedade, p. 7

 

Sem doses para todos

Bruno Alfano

Ana Letícia Leão

10/08/2020

 

 

Caso vacina seja eficiente, país precisará definir quem imunizar contra Covid-19

Sem a perspectiva de imunizar toda a população de uma vez só, o Ministério da Saúde já discute critérios para priorizar determinados grupos numa eventual vacinação contra a Covid-19. Especialistas apontam que, para essa decisão ser tomada, é preciso considerar que pessoas com mais risco devem estar no começo da fila. Essa estratégia, porém, diverge da divulgada pelo governo nesta semana.

Segundo o secretário de Vigilância em Saúde do ministério, Arnaldo Medeiros, o governo usará a mesma ordem de vacinação da gripe causada pelo vírus Influenza. No entanto, os grupos de risco das duas doenças não são completamente idênticos.

—É um absurdo as possíveis vacinas contra Sars-Cov-2 seguirem a mesma lógica de vacinação da Influenza. É um erro. Doenças diferentes requerem estratégias diferentes. Na estratégia contra Influenza, as crianças estão entre os grupos prioritários, o que é diferente da Covid-19 — avalia Fernando Hellmann, doutor em saúde coletiva e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina.

— Quando a vacina chegar, ela deve ser dada para que se restabeleça a igualdade de oportunidades para sobreviver à Covid-19 entre todos os brasileiros. Agentes abeque elam atamais a população idosa, doentes crônicos, indígenas, negros e pobres. E, por isso, eles devem ser aprioridade.

A definição dos grupos prioritários para a vacinação da Influenza foi feita em 2010 para o combate da pandemia que surgiu em 2009 e atingiu o mundo numa escala muito menor do que a Covid-19.

—Para definir os grupos prioritários, reunimos um comitê de especialistas. Hoje, tem projeto de lei para decidir essa ordem. Isso é um absurdo. É a demonstração da falta de liderança do Ministério da Saúde na pandemia. Essa é uma decisão do Executivo, amparado por cientistas — afirma José Gomes Temporão, ministro da Saúde à época.

O projeto de lei que tramita no Congresso é do deputado Wolney Queiroz (PDT-PE), que pretende estabelecer procedimentos e ordem de prioridade para vacinação contra a Covid-19. A ordem seria: profissionais da saúde; idosos com mais de 60 anos; pessoas com comorbidades; profissionais da educação; atendentes de público em órgãos públicos e empresas privadas; jornalistas; e, por fim, pessoas saudáveis de idade inferior a 60 anos.

Ricardo Gazzinelli, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, avalia que a classificação de grupos prioritários também deveria ser combinada com uma hierarquia de áreas em que as epidemias estejam fora de controle.

Outro grupo que deverá receber logon a primei rale vasão os voluntários ques e disponibilizaram atestara vacina e receberam placebo. Segundo Hellmann, isso faz parte dos compromissos éticos de qualquer pesquisa do tipo.

ESCASSEZ DE RECURSOS

A apostado governo feder aléa vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford, do Reino Unido, coma farmacêutica AstraZeneca. Ainda não há a confirmação de que ela proteja contra o vírus. Caso seja comprovada sua eficácia no tempo planejado, a previsão é de que as primeiras 15 milhões das 100 milhões de doses sejam disponibilizadas em janeirode 2021. Já o governo de São Paulo investe, através do Instituto Butantan, na tentativa de vacina da chinesa Sinovac. A distribuição de 240 milhões de doses também ficará a cargo do Ministério da Saúde.

— A escassez de vacinas é uma realidade mundial. Nenhuma estrutura fabril é capaz de construir o que precisa para imunizar todo mundo de uma vez só — analisa Flávio Guimarães da Fonseca, pesquisador de Microbiologia da UFMG.

Falta de recursos médicos não é novidade na rotina hospitalar. Nesta pandemia, o mundo se chocou com relatos de médicos italianos que precisavam escolher quem viveria equem morreria, já que não havia respiradores para todos. No Brasil, estados como Amazonas e Ceará viveram situações semelhantes.

Na história mundial, um marco dabio éticaéainvençã oda hemodiálise, nos EUA da década de 1960. Um comitê foi formado para decidir quem receberia primeiro esse tratamento.

— Quem cuidava da saúde também teria prioridade sobre pessoas fumantes, por exemplo, ou que não tinham práticas tão saudáveis — lembra Hellmann, da UFSC.

O debate de priorização de vacinas começou em 2003, coma epidemia d aS ars,e se aprofundou em 2009 porque a demanda era bem maior que a oferta, diz Alexandre Navarro, diretor-assistente do Centro de História da Medicina da Universidade de Michigan.

— A partir dali, bioeticistas passaram a repensar estratégias para distribuição equitativa de vacinas para novas cepas de doenças durante grandes surtos —explica o pesquisador.

Especialista em história das epidemias na Bahia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da B ah ia(IFBA),Christian e Maria Cruz de Souza conta que nem sempre as escolhas de grupos a serem vacinados no Brasil foram baseadas em critérios éticos.

— Entre o final do século XIX e o início do XX, a distribuição da vacina contra a varíola era limitada porque obedecia a determinados interesses de grupos. Os jornais da época denunciavam situações em que apessoa encarregada de vacinar só vacinou as pessoas do seu círculo —conta.

A discussão de priorização dos grupos já acontece em outro países. Nos Estados Unidos, por exemplo, o debate é feito no Comitê Consultivo para Práticas de Imunização, dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), e por especialistas em ética e vacinas da Academia Nacional de Medicina.

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), a OMS também está trabalhando em uma proposta com seus Estados-membros.