Título: Trono de Pedro está vago
Autor: Tranches, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 12/02/2013, Mundo, p. 12

Bento XVI surpreende os católicos e anuncia que deixará o comando da Igreja no próximo dia 28. Santa Sé promete um novo líder até a Semana Santa

Em um momento quase único na história do Vaticano, o papa Bento XVI anunciou ontem sua renúncia e chocou o mundo católico. Até a Páscoa, a Santa Sé deve conhecer seu novo líder. Alegando saúde frágil e o peso da idade, Joseph Ratzinger afirmou que deixará a sede episcopal em 28 de fevereiro, quando será convocado o conclave para eleger seu sucessor. Apesar da surpresa causada até mesmo no Estado do Vaticano, que celebrava 84 anos de criação, a decisão teria sido tomada em março passado. Aos 85 anos, Joseph Ratzinger encerra oito anos de pontificado marcados pelo conservadorismo doutrinário, pelo escândalo da pedofilia e pelo vazamento de documentos da Santa Sé, chamado de Vatileaks.

“No mundo de hoje, sujeito a rápidas transformações e sacudido por questões de grande relevo para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor tanto do corpo como do espírito”, diz a mensagem oficial do pontífice (leia a íntegra). Bento XVI deixou entrever os dilemas em que se debate a Igreja e pediu perdão por seus “defeitos”. Na véspera, em sua conta no microblog Twitter, o pontífice já havia se expressado em tom semelhante: “Devemos ter confiança na força da misericórdia de Deus. Embora sejamos todos pecadores, a Sua graça nos transforma e renova”.

A abdicação foi recebida pelos fiéis como um ato de coragem, mas deixou muitas perguntas. O último precedente remonta a seis séculos. As apostas sobre o sucessor já começaram e a lista dos mais cotados inclui dois africanos e ao menos um latino-americano. O Brasil será um dos primeiros países a receberem o novo líder católico, na Jornada da Juventude, em julho.

Falando em latim a um pequeno grupo de cardeais, de manhã, Bento XVI disse que “após ter examinado perante Deus reiteradamente minha consciência, cheguei à certeza de que, pela idade avançada, já não tenho forças para exercer adequadamente o ministério”. O comunicado foi traduzido para sete línguas e reverberou mundo afora, no dia em que os católicos celebravam Nossa Senhora de Lourdes, conhecida como padroeira dos enfermos. A repercussão foi imediata. O primeiro-ministro da Itália, Mario Monti, disse ter ficado “alterado” com a notícia.

O irmão do papa, o reverendo Georg Ratzinger, disse à imprensa que o pontífice enfrenta dificuldades para andar e foi aconselhado por médicos a não fazer mais viagens transatlânticas. Georg sabia da decisão do irmão havia alguns meses, e um editorial do L"Osservatore Romano, jornal oficial do Vaticano, reiterou que a decisão foi tomada na ocasião da viagem papal a Cuba e ao México, em março passado.

Com a difícil missão de suceder o carismático João Paulo II, morto em 2005, Joseph Ratzinger foi eleito sem que tivesse procurado “de modo algum” o pontificado, diz o Osservatore. Especialistas consultados pelo Correio disseram ver o seu papado como continuidade da orientação conservadora impressa por João Paulo II e uma espécie de preparação para um novo líder. Quando foi escolhido, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé tinha 78 anos e era o mais idoso a iniciar o pontificado nos últimos três séculos. Ninguém esperava que repetisse os 27 anos de papado de seu antecessor, mas tampouco que renunciasse.

“Sua escolha causou certo mal-estar. Ele já era uma pessoa com muita idade. Mas o que se defendeu na época foi o fato de ser tão próximo a João Paulo II”, afirmou André Chevitarese, especialista em Vaticano do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O conclave de 2005 evidenciara a dificuldade dos cardeais para encontrar um nome de consenso. Ratzinger foi eleito após quatro longas votações. Mesmo sem o carisma do “papa peregrino”, Bento XVI deu continuidade à guinada conservadora da Igreja. “Seu papado manteve basicamente o legado de João Paulo II”, observou Gerald Fogarty, historiador de teologia católica da Universidade de Virgínia (EUA).

Ratzinger divide opiniões. Uma das maiores polêmicas em torno de sua carreira eclesiástica se liga à censura que impôs, nos anos 1980, à corrente progressista identificada com a Teologia da Libertação. Entre outras medidas, o então cardeal impôs o silêncio ao ex-colega suíço Hans Küng e ao brasileiro Leonardo Boff, hoje afastado da vida sacerdotal. Procurado pelo Correio, Küng classificou a renúncia de Bento XVI como “legítima e compreensível”, digna “do nosso maior respeito”. Mas disse esperar “que Ratzinger não tente orientar a escolha de seu sucessor”.

O padre americano Jospeh Fessio, que foi aluno do atual pontífice, ponderou que, além das virtudes teológicas, Ratzinger permitiu e ordenou muitos jovens bispos na Igreja Católica. “Ele criou um marco na história da Igreja por ser capaz de, ao mesmo tempo, manter tradições e abrir caminho para reformas e renovações”, afirmou à reportagem. Orientado por Bento XVI em seu doutorado, o padre Fessio se recorda do último encontro que teve com o ex-professor, em 2010, quando já era notável sua fragilidade física. “A notícia foi inesperada, mas não estou totalmente surpreso. Em 2010, ele dissera que, se as condições de saúde não lhe permitissem mais fazer seu trabalho, ele renunciaria.”

O retiro do pastor Já novamente como o cardeal e teólogo Joseph Ratzinger, Bento XVI passará o período de sede vacante — durante o qual será escolhido o novo chefe da Igreja Católica — recolhido na residência papal de verão, na cidade italiana de Castelgandolfo (foto). Uma vez que o colégio de cardeais chegue a um nome para sucedê-lo, Ratzinger deve retirar-se para um mosteiro no próprio Vaticano. A exemplo do que fez o último papa a abdicar por decisão própria (Celestino V, no século 13), ele passará o resto da vida em reclusão.

A íntegra do anúncio

Caríssimos irmãos, Convoquei-vos a este Consistório não apenas para as três causas de canonização, mas também para comunicá-los uma decisão de grande importância para a vida da Igreja. Depois de ter examinado perante Deus reiteradamente minha consciência, cheguei à certeza de que, pela idade avançada, já não tenho forças para exercer adequadamente o ministério petrino.

Estou muito consciente de que este ministério, por sua natureza espiritual, deve ser executado não apenas com obras e palavras, mas também e, em não menor grau, sofrendo e rezando. No entanto, no mundo de hoje, sujeito a rápidas transformações e sacudido por questões de grande relevo para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor tanto do corpo como do espírito, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de tal forma que hei de reconhecer minha incapacidade para exercer bem o ministério que me foi encomendado.

Por isso, sendo muito consciente da seriedade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado por meio dos Cardeais em 19 de abril de 2005, de forma que, a partir 28 de fevereiro de 2013, às 20 horas, a sede de Roma, a sede de São Pedro, ficará vacante e deverá ser convocado, por meio de quem tem competências, o conclave para a eleição do novo Sumo Pontífice.

Caríssimos irmãos, dou graças de coração por todo o amor e o trabalho com que tens levado junto a mim o peso de meu ministério, e peço perdão por todos os meus defeitos. Agora, confiamos a Igreja ao cuidado de seu Sumo Pastor, Nosso Senhor Jesus Cristo, e suplicamos a Maria, sua Santa Mãe, que assista com sua materna bondade os Pais Cardeais ao elegerem o novo Sumo Pontífice. No que me diz respeito, também no futuro, gostaria de servir de todo coração à Santa Igreja de Deus com uma vida dedicada à oração.

Vaticano, 10 de fevereiro 2013. BENEDICTUS PP. XVI