Título: Intrigas e desavenças saem das sombras
Autor: Walker, Gabriela
Fonte: Correio Braziliense, 14/02/2013, Mundo, p. 12

Especialistas apontam a pressão política pelo domínio da cúria romana como a principal motivação da desistência de Joseph Ratzinger

O tom e os termos da homilia pronunciada na missa de cinzas reforçaram suepeitas e indícios levantados, dois dias antes, pelo surpreendente anúncio de que Bento XVI deixará o pontificado no próximo dia 28. No texto lido ontem, o papa explicitou para o mundo o conflito entre grupos que disputam os rumos da Igreja Católica, em paralelo aos desencontros da instituição milenar com questões polêmicas da atualidade. O desafio para os vaticanistas é bem mais complexo que avaliar o embate ideológico entre conservadores, na maioria europeus, e liberais, concentrados na América Latina, onde vive metade dos 1,2 bilhão de fiéis católicos.

O controle dos abusos da casta burocrática na sede da Igreja é o ponto central dos fatos que levaram ao processo histórico aberto na última segunda-feira, e cujo desfecho começa com a abertura do conclave, na segunda semana de março. Não há prazo preestabelecido para uma decisão, mas a expectativa é de que a fumaça branca saia da chaminé ao lado da Capela de São Pedro até a Páscoa, consagrando o novo líder do catolicismo.

“O contexto que levou Bento XVI a tomar a decisão extrema de deixar o trono de Pedro se assemelha à vivida em 1294 por Celestino V, um dos outros três papas que renunciaram”, explica o jornalista J. D. Vital, um dos maiores estudiosos no Brasil sobre a disputa de poder dentro da Igreja. Segundo ele, ambos os pontífices tiveram de enfrentar pressões políticas pelo domínio da máquina de gestão do Vaticano representada pela Cúria Romana.

Com o significado de Corte em latim, a Cúria é o órgão administrativo da Igreja responsável por zelar pelo bom funcionamento do arranjo burocrático e que assiste o Papa em suas funções. No caso de Celestino, só quatro meses após ser empossado na cidade de L’Áquila, na Itália, foi impedido de chegar a Roma. Por razões políticas e econômicas, renunciou em favor de Bonifácio VIII, da influente família burguesa Gaetani. O último que deixou o cargo espontaneamente foi Gregório XII, em 1415.

Para Vital, as intrigas palacianas parecem ter sido determinantes para a crise atual, tendo o seu ápice no ano passado, com o vazamento das cartas secretas do papa “por não se sabe quem”. Apesar de o mordomo de Bento XVI ter sido apontado como único vilão, o papa percebeu no escândalo que não tinha forças para controlar a Cúria e os seus associados, após oito anos à frente do cargo. O resultado da guerra fratricida, com capítulos de desvios financeiros e crimes sexuais, será o disparate de haver dois papas: um ativo e outro renunciante.

Sem comoção

No anúncio da desistência, prevista no direito canônico, o atual Bispo de Roma, como também é conhecido o papa, alegou que o gesto se devia à idade avançada, 85 anos, e à falta de vigor físico e espiritual para cumprir a missão para a qual foi eleito em um mundo em mutação. A decisão de informar a sua saída num encontro reservado com cardeais sinalizou também o interesse de evitar comoção. E a corrida para a escolha tem a vantagem de não requerer o prazo de nove dias previsto para funerais.

Não por acaso, imediatamente após a notícia da renúncia, começaram as especulações em torno dos papáveis. Apesar de todos responderem que é o Espírito Santo quem inspira as intenções de voto, sabe-se que questões regionais e pessoais são levadas em conta. É apontado como maior favorito o italiano Angelo Scola, arcebispo de Milão, de 71 anos.

Quem acompanha o xadrez político do Vaticano aponta sempre a escolha de bispos alinhados com as diretrizes de Roma. Conforme o momento histórico, os movimentos se alternam entre o centro romano e concessões à periferia, em países emergentes mais sujeitos a clamores sociais. Desde o “papa peregrino” João Paulo II, tem prevalecido a linha romana contra tendências como a Teologia da Libertação, abertamente simpática ao marxismo.

Dificuldades

No tabuleiro montado, a expectativa geral é a escolha de um papa europeu, mais jovem e conectado com a era digital. Além disso, terá de cuidar da gestão administrativa, para melhorar o caixa e conter os desvios. De nada adiantou Bento XVI lamentar o fato de clérigos que denunciavam abusos serem reposicionados pelas mãos do cardeal Tarcisio Bertone, considerado por fontes próximas ao papa o líder do governo paralelo, formado desde 2005.

Luiz Felipe Pondé, filósofo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), culpa o fogo amigo do clero pelo insucesso do pontificado de Ratzinger. Houve resistência dos seus comandados a reforçar a orientação romana em questões doutrinárias em contraponto às chamadas demandas modernas. Essas dificuldades maiores envolvem o diálogo com outras religiões (veja quadro) e temas sociais como casamento gay, divórcio, sacerdócio das mulheres, celibato sacerdotal, preservativos e questões da medicina e da bioética. “Chamar papa de conservador tem de ser relativizado. Podemos imaginar um papa a favor do aborto?”, provoca Vital.

“O contexto que levou Bento XVI a tomar a decisão extrema de deixar o trono de Pedro se assemelha à vivida em 1294 por Celestino V” J. D. Vital, jornalista e especialista em Vaticano

“Chamar papa de conservador tem de ser relativizado. Podemos imaginar um papa a favor do aborto?” Luiz Felipe Pondé, filósofo da PUC-SP