O globo, n. 31784, 14/08/2020. Sociedade, p. 8

 

Rastreamento

Rafael Garcia

14/08/2020

 

 

Cidades criam redes próprias de “detetives” da Covid-19

 Na resposta brasileira à Covid-19, governos estaduais e o federal priorizaram criação de leitos e medidas de quarentena, mas uma das pontas do tripé de combate ao vírus ficou solta: o rastreamento de contatos dos infectados. Especialistas apontam que essa falha estratégica ocorreu desde o início da pandemia, mas municípios e comunidades locais que criaram iniciativas própriaspara cobrires sal acuna estão vendo resultado.

O rastreamento consiste essencialmente em tentar identificarquem são as pessoas que podem também ter contraído o coronavírus mapeando a rede de contatos dos pacientes com diagnóstico positivo e analisando o seu histórico de movimentação. Uma vez identificados, outros casos suspeitos (e confirmados) podem ser encaminhados a atendimento médico ou isolamento, cortando a cadeia de transmissão do patógeno.

Apesar de recomendada enfaticamente pela Organização Mundial da Saúde como estratégia, o governo federal do não criou um protocolo nacional a ser seguido, a não ser para casos atrelados a testes. Alguns estados, também, buscaram mostrar serviço criando leitos hospitalares e comprando equipamentos, mas menosprezaram o rastreamento.

— Não precisa. Quem tem perna para ficar seguindo todos os contactantes? — questionou o médico David Uip, que coordenava a resposta paulista à Covid-19 em março, ainda antes de o estado registrar mortes pela doença.

Cidades que buscaram implementar isso de maneira sistemática tiveram de inventar suas próprias maneiras.

— Na ausência de diretrizes e protocolos nacionais ou estaduais, os municípios foram fazendo por conta própria aquilo que tinham ao alcance — afirma Maria Amélia Veras, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, uma crítica da política nacional de reação à Covid-19.

Na opinião da epidemiologista,o Brasil falhou em atrelar demais o rastreamento de contatoànecess idade detestesdi agnósticos dos casos suspeitos,por quenos meses iniciais da pandemia o deficit de kits de testagem era muito alto, e alguns gestores avaliaram que, sem eles, a identificação de contactantes não seria útil.

Alguns municípios, porém, seguiram adiante em suas iniciativas de criar protocolos para colocar em isolamento casos rotulados como suspeitos apenas por diagnóstico de sintomas. Foi o caso de Diadema (SP), na Grande São Paulo, que teve os primeiros casos registrados em março.

—Tínhamos uma equipe de dez pessoas dando telefonemas diários para os contactantes. Depois, quando o volume aumentou muito, criamos critérios para priorizar — conta Andreia Garbin, coordenadora do Departamento de Vigilância à Saúde do município.

A rotina do grupo, diz a sanitarista, era um trabalho de detetive, tentando achar prováveis infectados antes que manifestassem sintomas.

—Lançamos mão de vários recursos, buscávamos telefone na ficha, procurávamos a unidade de saúde onde a pessoa foi atendida, o hospital. Num dos casos eu mesma fiz o contato, localizei a paciente pelo síndico do prédio onde ela morava. Troquei mensagens com o marido, que estava positivo para Covid-19.

À medida que o volume de casos aumentou, a prefeitura começou a remanejar profissionais de saúde de outros postos para ajudar no rastreamento de contatos.

— Tivemos técnicos de enfermagem, dentistas fazendo o trabalho, além de médicos que, por serem de grupos de risco, foram afastados.

Na linha de frente, quando era preciso se paramentar com equipamentos de proteção para fazer visitas domiciliares, eram recrutados os ACSs (agentes comunitários de saúde).

USO DE TECNOLOGIA

Coma epidemia crescendo no estado, mesmo sendo impossível antecipar o rastreamento de todos os casos, G arbi naval iaque o trabalho ajudou o município a manejara demanda hospitalar da Covid-19 sem entrar em colapso.

Algumas cidades conseguiram lançar mão de mais recursos, já buscando consolidar o rastreamento com testes e aplicativos de celular. Niterói, por exemplo, fechou parceria com o Instituto D’Or, que criou um aplicativo para mapear casos, o Dados do Bem, e o integrou a sua rede de saúde.

—Um apessoa que testar positivo no Dados do Bem pode indicar cinco pessoas que sejam contatos próximos para fazer o teste de PCR — afirma o secretário municipal de saúde, Rodrigo Oliveira. Ele diz considerar o rastreamento de contatos um dos motivos pelos quais Niterói tem hoje uma taxa de mortes por habitante menor que acidade do Rio.

Florianópolis (SC) foi outra que adotou o uso de aplicativos, monitorando a presença de cidadãos em linhas de transporte público e estabelecimentos comerciais, e cruzando dados quando identifica um infectado dentro de um veículo ou loja.

No Rio, um grupo de moradores do Morro do Borel, na Tijuca, criou um serviço de WhatsApp que orienta pacientes e busca mapear casos locais de Covid-19 para ajudar pessoas a cumprir medidas de isolamento. A lógica desse tipo de iniciativa é que um contato freado via rastreamento custa pouco ao poder público e pode evitar uma dezena de casos duas semanas depois.