O globo, n. 31787, 17/08/2020. Sociedade, p. 9

 

Menina tem que viajar para interromper gravidez

Constança Tatsch

17/08/2020

 

 

Apesar da autorização da Justiça, médicos do Espírito Santo se recusam a atender criança de 10 anos estuprada

 O drama da menina de 10 anos grávida após ser estuprada teve ontem novo desdobramento. Ela foi obrigada a deixar seu estado, o Espírito Santo, para fazer um aborto autorizado pela Justiça porque médicos se recusaram a realizar o procedimento. A criança foi internada em outro estado.

Apesar da decisão judicial, o hospital de referência de Vitória alegou questões técnicas para não fazer o procedimento. Com apoio da Promotoria da Infância e da Juventude de São Mateus e da Secretaria Estadual de Saúde, ela foi transferida para outro estado, em companhia da avó, onde interromperá a gravidez num hospital de referência.

O destino foi mantido em sigilo pelas autoridades. A criança, grávida de cerca de 20 semanas, enfrenta, de acordo com fontes da reportagem, problemas de saúde. Ela tem direito de realizar o aborto legal por ter sido vítima de violência sexual e pelo risco de morte materna.

O hospital alegou que a idade gestacional estava avançada e, portanto, não era amparada pela legislação. Porém, a advogada Sandra Lia Bazzo Barwinski, do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem Brasil), afirma que, no Brasil não é determinado qualquer tipo de limite na legislação.

— O Código Penal diz que não é crime o aborto, com consentimento da gestante e praticado por médico, quando houver risco de vida à gestante ou for decorrente de estupro. Nosso código não coloca data, peso, limite. Se uma paciente chegar com gestação de seis, sete, oito meses e estiver correndo risco de morte, o médico vai avaliar o risco e dar opção de fazer a antecipação do parto para salvar a sua vida —afirma a advogada.

Segundo a advogada, que acompanha o caso, a menina está com diabetes gestacional.

—A criança está doente, o que potencializa o risco de morte dela. É uma emergência médica e numa emergência médica não há objeção de consciência, pela ética médica. Era obrigação do serviço de saúde prestar assistência médica.

O tio da criança é investigado por estuprá-la desde que ela tinha 6 anos de idade. Ela fugiu de casa e foi levada pelo Conselho Tutelar para um abrigo.

Já internada num hospital público de outro estado, a menina foi localizada por ativistas antiaborto, que cercaram o local. Dois vídeos divulgados na internet mostram ativistas hostilizando o médico que seria o responsável pelo procedimento.

A secretaria de saúde doesta doque recebeu acriança afirma que segue a legislação vigente em relaçãoà interrupção da gravidez, além dos protocolos do Ministério da Saúde para a realização do procedimento. O corregedor nacionalde Justiça, Humberto Martins, pediu ontem que o Tribunalde Justiçado Espírito Santo "preste informações a respeito das providências adotadas pelo Judiciário local no tocante ao caso da criança.

AMEAÇAS DE ATIVISTAS

Uma das responsáveis por disseminar o paradeiro da criança foi a ativista bolsonarista Sara Giromini, que divulgou o primeiro nome da menina capixaba em postagem de Twitter. O texto foi removido pela administração da rede social, que já havia bloqueado a ativista antes por ordem judicial.

Giromini havia sido presa pela Polícia Federal durante apuração de organização dos atos antidemocráticos em Brasília. Antes, havia trabalhado como coordenadorageral de Atenção Integral à Gestante e à Maternidade do Ministério da Família, Mulheres e Direitos Humanos, por indicação da ministra Damares Alves, com quem compartilha bandeiras contra o feminismo e o aborto.

A coordenadora do hospital informou que um grupo de “fundamentalistas religiosos” cercou a unidade e chamou os médicos de assassinos. Um outro grupo de manifestantes, de defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, foi ao local para impedir que os ativistas antiaborto invadissem o hospital. A coordenadora não soube informar quantas pessoas participaram da manifestação. Nos vídeos, o grupo antiaborto aparentava ter cerca de 40 pessoas.

Um outro vídeo que circula nas redes mostra ativistas contrários ao aborto tentando invadir o hospital, protegido por seguranças.

REFORÇO POLICIAL

O hospital solicitou reforço policial ao governo do estado. Segundo a coordenadora, os agentes de segurança devem permanecer até que a menina tenha alta. Ela diz que esse tipo de procedimento costuma exigir uma internação de um dia, mas que a paciente só deve ser liberada para voltar ao Espírito Santo, após a garantia de que seu estado de saúde é satisfatório.

— Me surpreende ver tantas pessoas reunidas, num momento de pandemia, sem respeitar recomendações sanitárias, gritando na porta de uma maternidade, nos agredindo, chamando de assassino — afirma a coordenadora do hospital.

Ela diz que o hospital teve que bloquear portas depois de sofrer ameaças, comportamento que ela considerou como “agressivo".

—A diretoria da instituição lamenta o ocorrido, e mais do que nunca defendemos a vida das mulheres e a garantia de seus direitos sexuais e reprodutivos. Temos lutado pela efetivação desses direitos no SUS, para que todas as mulheres tenham um atendimento digno —declarou ela.