O globo, n. 31787, 17/08/2020. Economia, p. 15

 

Peso das estatais 'blindadas'

Marcello Corrêa

17/08/2020

 

 

Empresas públicas com aval de Bolsonaro para privatização São Só 17% do patrimônio total

 Indicado para suceder Salim Mattar na tarefa de tocar o projeto de privatizações, o novo secretário de Desestatização, Diogo Mac Cord, só poderá avançar sobre uma pequena parte do universo de quase 200 companhias públicas, entreasdiretamentecontroladas pela União e as subsidiárias. Segundo dados de 2019, as estatais somam R$ 711,4 bilhões em patrimônio líquido. Mas, desse montante, 83% correspondem às empresas blindadas pelo presidente Jair Bolsonaro: Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, além do BNDES. Os demais negócios do governo federal, inclusive a Eletrobras, contabilizam R$ 118,2 bilhões —ou 17% do total. Para especialistas, está claro que o processo dereduçãodesseportfóliotende a ser demorado e depende de articulação política.

Os dados são do mais recente Boletim das Estatais, do Ministério da Economia. O patrimônio líquido das estatais não reflete necessariamente o valor pelos quais seriam vendidas. Isso depende de fatores de mercado. No entanto, dá uma dimensão do que de fato poderia sair das mãos do Estado.

Nas contas de Mattar, o número de ativos é bem maior que as 46 empresas de controle direto da União e as 148 subsidiárias — que somam 194 estatais. O ex-secretário calculou ainda 210 coligadas (nas quais companhias controladas pela União ou subsidiárias têm participação significativa) e outras 210 participações do governo federal em empresas, o que eleva o total de bens a serem desestatizados para 614. Com base nesse critério, ele deixou o cargo com uma marca de 84 vendas, mas não privatizou nenhuma empresa-mãe, uma estatal clássica. Em novembro, ainda viu o governo Bolsonaro criar mais uma: a NAV Brasil, responsável pelo controle do espaço aéreo.

EMPRESAS EMPREGAM 476 MIL

A estratégia do ex-secretário se concentrou na venda de subsidiárias de estatais ou de participações detidas por elas em outros negócios. Só a venda de subsidiárias da Petrobras, como BR Distribuidora e TAG, e ações detidas pelo BNDES resultaram em R$ 88,7 bilhões, aproximadamente 65% do total de R$ 134,9 bilhões arrecadado. A ação do BNDES, segundo fontes, foi um pedido específico do ministro da Economia, Paulo Guedes, para turbinar os trabalhos da pasta na desestatização, diante da dificuldade em outras frentes.

O patrimônio de R$ 118,2 bilhões que estaria livre para venda é um número que pode variar. O balanço do Ministério da Economia não detalha quanto dos valores concentrados nas empresas cuja privatização foi vetada por Bolsonaroéreferenteàssubsidiárias dessas companhias.

Esses negócios sob o guarda-chuva de grandes estatais estão no plano de desestatização da equipe econômica e podem ser entregues ao setor privado sem aval do Congresso, graças a uma decisão do ano passado do Supremo Tribunal Federal (STF). Já a venda de uma empresa-mãe, como a Eletrobras, precisa passar pelo Legislativo.

Egresso do setor privado e um crítico da excessiva presença do Estado na economia, Mattar saiu com duras críticas à burocracia do setor público. Para ele, o ambicioso projeto de Guedes não avançou por falta de vontade política.

O tamanho do universo de empresas estatais dá a dimensão das pressões. Hoje, essas empresas empregam mais de 476 mil funcionários, o que reforça a corrida de políticos por indicações e a resistência de corporações contra perda de prerrogativas.

O conjunto de companhias públicas inclui casos que se transformaram em anedotas nosdebatessobreareduçãodo papel do Estado. É o caso da EPL —que nasceu para projetar o trem-bala brasileiro, que jamais saiu do papel. Hoje, a empresa ainda tem 132 funcionários e depende de recursos daUniãoparasemanternopapel. No ano passado, os repasses foram de R$ 98 milhões.

COMPANHIAS DEPENDENTES

A Ceitec, ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, também virou folclore ao ser apelidada de empresa do “chip do boi”. A fabricante de semicondutores, que ainda preserva 183 funcionários, está em processo de ser dissolvida, segundo o relatório mais recente do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI).

Ambas as companhias fazem parte de um capítulo à parte na discussão sobre estatais no país: as empresas dependentes. Só no ano passado, o governo precisou desembolsar R$ 20 bilhões para mantêlas de pé. O grupo inclui desde casos emblemáticos de distorções do papel do Estado a organizações em pleno funcionamento, como a Embrapa.

Na avaliação do analista da Instituição Fiscal Independente (IFI) Josué Pellegrini, que acompanha o panorama das estatais, o debate sobre as empresas dependentes passa pela definição de que políticas públicas fazem sentido no país, já que, na prática, essas instituições atuam como órgãos do governo.

—A gente tem muito pouca avaliação de políticas públicas no Brasil. E isso vale para tudo, os benefícios tributários, os subsídios, política educacional e, como não poderia deixar de ser, essas empresas criadas para um determinado objetivo também não são avaliadas —afirma o especialista.

O governo planeja avançar no processo de privatizações, mas sabe que será lento. Hoje, 15 empresas estão na lista de estudos, incluindo Correios e Eletrobras, que depende da negociação com o Congresso edeveservendidaatéoterceiro trimestre de 2021, segundo informou recentemente o presidente da companhia, Wilson Ferreira Júnior.

No mercado, há expectativa de que o processo acelere, mas os riscos estão calculados.

—Quem achar que não vai ter discussão jurídica sobre qualquer ativo, em qualquer época, quando ele tem uma exposição midiática, está sonhando — comenta Alberto Sogayar, sócio da área de infraestrutura do L.O. Baptista Advogados.