O globo, n. 31786, 16/08/2020. Sociedade, p. 11

 

Nova geração antirracista

Amanda Pinheiro

Gilberto Porcidonio

16/08/2020

 

 

Jovens negros usam redes sociais para se informar, se unir e combater crimes raciais

 “Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes”, diz um trecho do hit “AmaRelo”, do rapper Emicida. Ele virou o hino de uma geração que, ao mesmo tempo em que não deseja se ver restrita apenas à luta contra o racismo, vem batendo de frente contra ele sem meias palavras. Já houve época em que casos como o do entregador Matheus Fernandes, de 18 anos — acusado por dois policiais militares que faziam a segurança privada de uma loja do Ilha Plaza Shopping, na Zona Norte do Rio, de ter roubado um relógio que ele havia comprado para o pai —não ganhavam tanta notoriedade.

Porém, graças às articulações dentro e fora da internet, eles têm sido mais denunciados. Mesmo com a nota fiscal do produto, Matheus foi retirado da loja, agredido e teve até uma arma apontada contra a cabeça. A ação, gravada por testemunhas, tomou as redes, fez com que jovens que já haviam passado pela mesma situação no mesmo local contassem suas histórias e levou a Polícia Civil a indiciar os dois PMs por racismo e abuso de autoridade. Temendo ameaças, Matheus precisou sair de casa e está sem trabalhar.

— Me sinto inseguro porque, se fizeram isso comigo em um shopping, Deus me livre do que podem fazer na rua. Mas fiquei feliz porque outros rapazes que também sofreram isso lá soltaram a voz — diz o jovem, que sonha em seguir a carreira militares e diz inspirado pelas letras do rapper mineiro Djonga, todas muito incisivas sobre o racismo:

—É o cara em quem eu me espelho. Nós nunca conversamos sobre racismo em casa, mas eu peguei essa visão. A visão antirracista vinda da música também ajudou Tatiana Nefertari, 24 anos, cuja família tampouco tratava de questões raciais com frequência. Empoderada pelo samba e pelo rap, ajudou a criar, no ano passado, a Biblioteca Comunitária Assata Shakur —nomeada em homenagem à ativista negra americana —, na periferia da Zona Leste de São Paulo, dedicada a livros de pessoas pretas e às histórias dos povos africanos.

Muito ativa nas redes, ela afirma que os ataques online têm se intensificado justamente porque sua geração se recusa a abaixar a cabeça. — As pessoas não sabem lidar com os questionamentos das pessoas pretas quando apontamos o racismo e, quanto mais visibilidade se tem, mais ataques se sofre. É como se estivéssemos em uma vitrine para que tacassem pedra. Eu acho preocupante — diz Tatiana Nefertari.

DISCURSO DIRETO E INCISIVO

Moradora de Duque de Caixas, na Baixada Fluminense, a programadora e pesquisadora Nina da Hora, de 25 anos, cursa Ciência da Computação na PUC-Rio e já teve diversos embates com pessoas e em processos seletivos ao ser julgada pela cor de sua pele.

Nina diz que a internet tornou público um debate que já acontecia entre esta geração de jovens negros que, cansados das agressões racistas, se uniram em “aquilombamentos”, como grupos e coletivos. Por isso, o discurso se torna muito mais direto e incisivo.

—Nós somos um pouco afobados e até abusados às vezes, porque não escutamos quem veio antes da gente, mas acreditoque exista uma vontade de que as coisas sejam faladas e feitas por nós e não mais para nós. Essa micro agressão, a gente não permitem ais. Agora,temosque juntar osantirr acistas da internet com os de for adela, porque, às vezes, parecem dois mundosdi ferentes. Na casa de Naila Neves, cientista política e ativista de 28 anos, esses mundos se encontram. Seus pais são do MNU (Movimento Negro Unificado) e ensinaram ela e o irmão a reconhecer e a reagir ao racismo desde cedo. Integrante do Ilê Asé Orisá Dewi, casa de candomblé que é uma das mais antigas da nação Ketu, em Brasília, ela utiliza suas redes sociais para informar sobre ataques aos praticantes de religiões afro-brasileiras, além de outros conteúdos antirracistas.

— Houve um encontro de duas estratégias: o acesso aos espaços de poder para produção e a internet como uma ferramenta para potencializar. Nas redes, temos o Black Twitter. Fora delas, há outros movimentos. Por exemplo, se um rapaz é assassinado na favela e tentam associá-lo ao crime, as mães se posicionam e mobilizam a comunidade para mostrar que aquela pessoa era inocente. No meu caso, eu falando sobre isso, aqui na minha cidade, serei silenciada. Na internet, tenho uma rede ao meu lado. Joel Luiz Costa, advogado criminal de 31 anos, é da favela do Jacarezinho, no Rio, e integrante do Fórum Grita Baixada. Como outros ativistas, usa as redes sociais para discutir conteúdos antirracistas e diz que seu letramento racial veio por meio de discussões online.

—Eu sabia que era um homem negro, favelado, mas a profundidade das pautas veio a partir das redes sociais. Acredito que esse espaço oferece uma introdução ao tema, no qual você pode pesquisar depois, como foi o meu caso — relata Joel.

—Existe a força coletiva da comunidade negra, que está ganhando voz, e uma geração de pessoas brancas mais conscientes, que tem dado amplitude às nossas falas. E expor os casos de racismo também colabora com isso.

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Militantes históricos veem reflexo de suas lutas no cenário atual

16/08/2020

 

 

'O racismo se explicitou porque ocupamos espaços de poder', diz Preto Zezé

 A juventude empoderada de hoje não é um mero fenômeno do momento, mas uma construção. Quem observa isso é o presidente global da Central Única das Favelas (Cufa), Preto Zezé, que viu, nos anos 1990, o movimento hip-hop catalisar, nos jovens, a consciência de raça e os anseios por igualdade racial. No seu caso, o descoberta veio com uma música do rapper Thaide, “Homens da lei”, seminal do rap paulistano, e depois com a música “Negro limitado”, dos Racionais MC's.

— Foi tipo uma convocação de guerra de que, hoje, nós colhemos os frutos. É um acordar. Se agora o racismo está se explicitando é porque estamos enfrentando e ocupando espaços de poder. A tendência é a gente ter cada vez mais conflitos nesses espaços em que estamos cruzando as linhas — diz Zezé.

— Quando colocamos essa nova perspectiva de poder, apontando que a população negra está em maioria e, só nas favelas, produz R$ 119 bilhões em poder de consumo, isso inverte a relação com as empresas que a encaravam como carente e não como potente. É natural que essa nova mentalidade se choque com esse campo de força contra a concentração de podere renda—diz Zezé.

O babalaô e professor Ivanir dos Santos, que luta há 40 anos contra a intolerância religiosa, observa que todo o racismo que, antes, operava mais no subterrâneo das relações, se intensificou justamente por causa desse novo patamar. Ele diz que apolítica decotas para acesso às universidades, iniciada nos anos 2000, foi fundamental para esta conscientização e que já naquela época os ataques racistas se intensificaram por conta disso. Pioneira na adoção de cotas no vestibular, em 2004, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) sofreu com banheiros com pichações preconceituosas e panfletos contra professores.

—Essa luta contra o genocídio negro no Brasil recente é bem mais antiga do que o caso George Floyd (negro americano assassinado por policiais em 25 de maio, em Minneapolis), por exemplo. Começa com a Associação dos Ex-alunos da Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), em 1979. Esta nova geração que luta hoje é beneficiada dessa conquista e o meu esforço é para que haja diálogo dessa co maminha para que pavimentemos uma estrada para as próximas que virão —diz Ivanir dos Santos. Este ans ei oéo mesmo da jornalista e apresentadora Maíra Azevedo, mais conhecida como Tia Má, de 39 anos. Comandando um quadro no programa “Encontro”, de Fátima Bernardes, ela percebe na pele que, conforme sua visibilidade aumenta, os ataques vão ficando mais cruéis. Grávida de seis meses e mãe de um menino negro de 12 anos, chegou a ser ameaçada de morte:

— Espero que meus filhos não precisem lidar com as agruras do racismo como eu ainda preciso combater.