Correio braziliense, n. 20928, 10/09/2020. Artigos, p. 11

 

STF e devido processo legal

Fábio Medina Osório 

10/09/2020

 

 

O due process of law tem origem mais conhecida na Magna Carta inglesa de 1215, exatamente na garantia de proteção à liberdade e à propriedade do ser humano, com duas exigências fundamentais: a sentença legítima dos pares e a lei do lugar. É claro que se trata de um conjunto de normas imanentes ao modelo Common Law, no curso da Idade Média, que contribuíram para a formação do Estado Moderno. A expressão due process of law aparece mais precisamente em 1344, quando o Parlamento inglês força o rei Eduardo III a aceitar uma lei desenhada para frear os próprios excessos. Através de Coke e Blackstone, o princípio do devido processo legal chegou ao direito norte-americano no momento da Revolução, embasando nova ordem normativa, ainda que seu desenvolvimento só viesse a ocorrer mais tarde. É um princípio que está expresso na Constituição brasileira de 1988, com origens históricas mais remotas.

O STF define muito claramente que os processos administrativos sancionadores, punitivos ou não, obedecem aos pilares do devido processo legal formal e substancial. Há processos administrativos restritivos de direitos que não ostentam caráter punitivo. Existem processos judiciais e administrativos. Investigações também se submetem ao devido processo legal administrativo. E mesmo atos meramente apuratórios, preliminares a qualquer investigação. Por devido processo legal substancial deve-se compreender o princípio de interdição à arbitrariedade dos Poderes públicos. Nessa categoria, que é comum às famílias jurídicas da common law e da civil law, englobam-se direitos implícitos na Constituição e nas leis, que podem ser reconhecidos pela jurisprudência judicial ou administrativa.

Na Espanha, a vedação à arbitrariedade está explícita na Constituição, e ali foi posta pelo então senador Lorenzo Martin Retortillo Baquer, sob inspiração de Eduardo García de Enterría. No Brasil, o STF tem sido o construtor do aludido princípio de vedação à arbitrariedade, extraindo-o do devido processo legal substancial. A proibição de atos arbitrários, endereçada aos Poderes públicos, é um direito fundamental das pessoas e se desdobra em múltiplas direções. Um ser humano não pode submeter-se ao capricho de outro, já dizia Roscoe Pound, valorizando o devido processo legal.

O devido processo legal formal, por seu turno, abarca os direitos de defesa, na sua plenitude, com os meios e recursos inerentes, além do contraditório. Tais direitos contemplam direitos de manifestação nos processos, paridade de armas, direito de ser ouvido. Em recente decisão, no caso Deltan (Pet 9.068 MC/DF), o ministro Celso de Mello disse que “o exame da garantia constitucional do due process of law permite nela identificar, em seu conteúdo material, alguns elementos essenciais à própria configuração, entre os quais avultam, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis ex post facto; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); e (l) direito à Prova (...)”

O direito ao devido processo legal, na esfera administrativa, impõe que aos investigados se lhes assegurem direitos relacionados à delimitação do objeto da investigação, que deve recair sobre fato típico e ilícito em tese, vedando-se a arbitrariedade do investigador. É dizer, não pode o investigador instaurar procedimento apuratório administrativo ou criminal sem fato típico e ilícito no centro gravitacional, fato esse devidamente narrado e delimitado. Fatos incertos e indeterminados, ou atípicos, não servem para embasar instaurações de cadernos investigatórios, sob pena de se instaurar o reino do arbítrio. Da mesma forma, o direito de não ser investigado ou processado sem justa causa ou por fatos atípicos é decorrência do direito ao devido processo legal substancial. Investigações secretas e arbitrárias ocorriam em tempos obscuros incompatíveis com as luzes de um regime democrático. Atos abusivos e arbitrários geram direitos à reparação de danos.

Não por outra razão, a Lei nº 13.869/19 estabelece ser crime de abuso de autoridade, no art. 27, requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa, apenando com seis meses a dois anos de detenção essa conduta. A ressalva do parágrafo único diz respeito à força dos indícios que, para as infrações administrativas afetas a sindicâncias e investigações preliminares, poderão ter um padrão inferior de prova. Em qualquer caso, é vedado instaurar investigações, sindicâncias ou procedimentos preliminares por fatos atípicos ou sem justa causa.

De igual modo, a lei veda a persecução penal, civil ou administrativa arbitrária, que também é crime previsto no art. 30. Igualmente é crime (art. 33) exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal. Tais ilícitos de abuso de autoridade mostram o repúdio ao arbítrio do agente público fiscalizador.