Valor econômico, v. 21, n. 5089, 18/09/2020. Brasil, p. A2

 

Fome voltou a aumentar no país, alcançando 10,3 milhões de pessoas

Bruno Villas Bôas

 Alessandra Saraiva

18/09/2020

 

 

Número foi atingido em meados de 2017 a meados de 2018, correspondente a 5% da população brasileira

A crise econômica enfrentada pelo Brasil nos últimos anos cobrou o preço das famílias mais pobres. Depois de mais de uma década em declínio, a fome voltou a crescer e atingiu 10,284 milhões de pessoas de meados de 2017 a meados de 2018 - o correspondente a 5% da população brasileira.

Divulgada ontem pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) mostra que a insegurança alimentar grave havia recuado de 8,2% da população em 2004 e para 3,6% em 2013, quando atingia 7,2 milhões de pessoas.

A melhora dos indicadores de segurança alimentar ao longo de mais de uma década tirou o Brasil do Mapa Mundial da Fome em 2014, segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) divulgado naquele ano. O retorno ao Mapa da Fome, porém, é incerto.

“Esta não é uma questão simples, pois são muitas as variáveis para se chegar a essa situação. Uma delas é o impacto da pandemia na economia e na renda das famílias, e os dados do IBGE são de 2017/2018, sem o período da pandemia”, disse Gustavo Chianca, representante-adjunto da FAO no Brasil.

Para Francisco Menezes, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), os dados do IBGE comprovam que o Brasil retornou ao Mapa da Fome em 2018.

O pesquisador acrescentou que o auxílio de R$ 600 foi um “desafogo” durante a pandemia, mas o quadro da fome pode se agravar com o fim do pagamento do benefício no fim deste ano. “Isso nos preocupa muito”, afirmou Menezes. “Ninguém tem a ilusão de que a economia vai se recuperar rapidamente.”

Para reduzir a fome do país, o especialista do Ibase defendeu uma reforma tributária com progressiva taxação de riqueza, para angariar recursos e alocar em programas de transferência de renda. Para a FAO, o caminho é ampliar os programas sociais e de geração de emprego e renda.

Há pouco mais de um ano, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que a fome no Brasil seria uma “grande mentira”. “Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não”, afirmou o presidente durante um café da manhã com representantes de veículos convidados.

Com o objetivo de medir a insegurança alimentar, o IBGE fez 14 perguntas para famílias de 57.920 domicílios entre junho de 2017 e julho de 2018. Questionou se alguém “comeu menos do que devia por falta de dinheiro” e “sentiu fome, mas não comeu por falta de dinheiro” nos 90 dias anteriores, por exemplo.

Os resultados mostram que 36,7% das famílias brasileiras vivam com algum nível de insegurança alimentar, o correspondente a 25,3 milhões de domicílios. Essa insegurança é dividida conforme a severidade: leve (24% do total das famílias), moderada (8,1%) e grave (4,6%).

Metade das crianças com menos de cinco anos de idade vivia em domicílios com algum grau de insegurança alimentar. O país tinha 13,075 milhões de crianças a faixa de zero a quatro anos, das quais 6,539 estavam em situação de insegurança alimentar, o correspondente a 50% do total.

André Martins, gerente da POF, diz que a insegurança leve inclui famílias que abrem mão de qualidade de alimentos para não comprometer a quantidade consumida, preocupadas com o futuro. Na moderada, existe falta de alimentos, mas não há fome. Na grave, a fome é “uma experiência vivida”, disse.

O período da pesquisa foi marcado pelo lento processo de recuperação da economia após a recessão de 2014 a 2016, oriunda de equívocos da gestão macroeconômica de anos anteriores. Foram anos de desemprego elevado, perda da renda, aumento de miseráveis no país.

A situação mostrou-se mais grave nas regiões Norte e Nordeste, um padrão que se repete em outros indicadores sociais. Na região Norte, 10,2% dos domicílios pelo menos um morador tinha fome, seguido pelo Nordeste (7,1%). O percentual era menor no Sul (2,2%) e Sudeste (2,9%).

Também era mais grave nas áreas rurais, outro padrão conhecido da fome. Dados da pesquisa mostram que 7,1% dos domicílios tinham situação grave de insegurança alimentar, acima do registrado nas áreas urbanas (4,1%). Regiões rurais costumam ter menores rendimentos.