Correio braziliense, n. 20930, 12/09/2020. Colunas, p. 2

 

Nas entrelinhas: A liturgia e a política

Carlos Alexandre de Souza 

12/09/2020

 

 

Nesta semana, dois integrantes do Supremo Tribunal Federal deram mostra de que o regime democrático tem liturgia própria. Ao assumir a presidência da mais alta Corte de Justiça na última quinta-feira, o ministro Luiz Fux sinalizou que pretende demarcar com mais clareza os limites na atuação dos Poderes republicanos, de modo a reforçar a missão constitucional de cada um deles. Trocando em miúdos,o recado do novo presidente é óbvio de tão cristalino: o Supremo julga, o Parlamento legisla e o Executivo governa. A mensagem de Fux é um claro sinal de que o Supremo pretende retomar o papel de guardião da Constituição, deixando para a história a atuação de Dias Toffoli a fim de manter a ordem democrática durante o conturbado primeiro semestre deste ano. Fux entende que o Supremo tem uma liturgia a cumprir—assegurar a “dignidade da jurisdição constitucional” —e evitará decisões que podem ser interpretadas como judicialização da política.

Mais do que nunca, segundo a mensagem de Fux, é fundamental que cada Poder busque cumprir o dever que lhe foi atribuído pela Carta Magna. No contexto da pandemia, existem diversos exemplos que podem nos levar ao questionamento: estarão os Poderes constituídos dando a contribuição necessária para enfrentar a calamidade que afeta a todos os brasileiros e deixará marcas profundas pelos próximos anos? Tornou-se evidente, por exemplo, que o governo federal se absteve largamente de coordenar ações sanitárias integradas para o enfrentamento da covid-19. Dia sim, dia não, o presidente culpa governadores e prefeitos pela realidade da pandemia no país, como se a saúde dos brasileiros fosse assunto alheio às atribuições do Palácio do Planalto. O presidente entendeu a pandemia como um problema econômico, e acionou o governo para socorrer financeiramente os milhões de brasileiros que se situaram em situação crítica.

Caberá a nós, em algum momento, julgar em que momento o presidente foi regido pela ação ou pela omissão. O mesmo questionamento pode ser direcionado ao Congresso e ao próprio Judiciário, à luz da necessária reforma administrativa. O que pretendem fazer esses Poderes no imperioso esforço para impedir o absoluto esgotamento das contas públicas em futuro próximo, na sequência do período mais traumático da pandemia? Ontem, foi o ministro Celso de Mello a insistir na importância de se obedecer a liturgia do ordenamento democrático. Ao determinar que o chefe do Executivo deponha pessoalmente sobre a acusação de interferência política na Polícia Federal, o decano asseverou que mesmo a autoridade mais alta da República está submetida aos ditames da lei. É certo que Celso de Mello não discutiu o mérito do caso—e possivelmente não terá oportunidade de fazê-lo, em razão da aposentadoria em novembro próximo —, mas votos anteriores do ministro indicam que ele não permitiria ações incompatíveis com valores democráticos — entre os quais a autonomia de uma instituição de Estado como a Polícia Federal. É certo que esse espírito litúrgico continuará presente no Supremo Tribunal, inclusive na figura de seu novo presidente.

A lealdade à liturgia democrática, com respeito irrestrito aos limites e às responsabilidades estabelecidos pela Lei Maior, é a garantia para que a política siga no caminho da virtude. Fux, mais uma vez, adiantou o posicionamento do Supremo. “(…) Se devemos deferência ao espaço legítimo de atuação da política, não podemos abrir mão da independência judicial atuante por um ambiente político probo, íntegro e respeitado. De forma harmônica e mantendo um diálogo permanente com os demais Poderes, o Judiciário não hesitará em proferir decisões exemplares para a proteção das minorias, da liberdade de expressão e de imprensa, para a preservação da nossa democracia e do sistema republicano de governo.”