O Estado de São Paulo, n.46277, 30/06/2020. Internacional, p.A13

 

Quatro ideias que a pandemia desbancou

Moisés Naim

30/06/2020

 

 

A covid-19 não faz vítimas só entre as pessoas, mas também entre as ideias. E, quando não as mata, as desacredita e enfraquece. As ideias tradicionais a respeito de escritórios, hospitais e universidades, por exemplo, não sobreviverão ilesas às consequências econômicas da pandemia. Nem algumas das ideias mais globais na economia e na política. Essas quatro são exemplo:

1) Os EUA como fonte de estabilidade para o mundo

Falso. Washington é um grande epicentro da instabilidade geopolítica. As reações do governo de George W. Bush aos ataques terroristas de 11 de setembro, por exemplo, provocaram longas guerras: em 2008, os EUA exportaram uma grave crise financeira para o mundo. Desde sua eleição em 2017, Donald Trump mostra, quase diariamente, que em vez de acalmar o mundo e o seu país, prefere fomentar conflitos. Suas reações à pandemia reconfirmaram que a Casa Branca é um aliado volátil, desajeitado e pouco confiável. A grande ironia do fato de os EUA irradiarem instabilidade é que um dos maiores beneficiários da ordem internacional que Trump está desmontando é o país que ele preside.

2) Cooperação internacional

A pandemia confirmou que não há comunidade internacional capaz de lidar com ameaças globais em conjunto. As tragédias na Síria, no Iêmen, na Venezuela ou a dos rohingya são apenas alguns exemplos. Essa comunidade internacional idealizada, que trabalha em coordenação, tem sido notável por sua ausência. Os países, em vez de se unirem para enfrentar o inimigo comum, estão entrincheirados atrás de suas fronteiras. A pandemia deveria ter fortalecido a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma entidade multilateral imperfeita, mas indispensável. Em vez disso, os EUA se convenceram que a OMS foi capturada pelo governo chinês e decidiram se retirar dela. A desconfiança da cooperação internacional também contribuiu para fragmentar e tornar ineficaz a coordenação entre os países em relação aos padrões, à produção e à distribuição de medicamentos e materiais médicos, por exemplo. E essa é outra ironia: a perda de prestígio da colaboração internacional resultou em uma resposta essencialmente local – e inadequada – a uma ameaça global.

3) Austeridade fiscal

Essa ideia, antes muito popular como remédio obrigatório para enfrentar uma crise financeira, agora é tóxica. Diante de um colapso econômico, o governo teve de restringir severamente suas despesas e dívidas. Agora é o contrário: gastar mais e contrair mais dívidas é a receita da moda. Assim, em todos os lugares, os governos aumentaram os gastos públicos para níveis sem precedentes. O déficit fiscal, que é a diferença entre a arrecadação de impostos e outras receitas do governo e os gastos públicos, subiu para níveis nunca antes vistos. Nos EUA, por exemplo, o déficit fiscal deste ano chegará a um valor equivalente a 24% do total da gigantesca economia americana. O endividamento de quase todos os países também aumentou. A maior dívida do mundo em relação ao tamanho de sua economia pertence ao Japão. Os EUA são os campeões mundiais em termos da quantidade absoluta de dinheiro devido (US$ 20 trilhões). Nos próximos anos, haverá um debate global importante e furioso a respeito de quando e como essas dívidas serão pagas (e por quem!).

4) Globalização

Outro conceito que foi idealizado e agora é demonizado. Não era tão bom antes, nem é tão ruim agora. A globalização inclui o enorme aumento nos fluxos internacionais de produtos, serviços, dinheiro e informação. Mas também atividades de terroristas, traficantes, criminosos, cientistas, artistas, filantropos, ativistas, atletas e ONGs. E isso, claro, vale também para as doenças.

Ninguém pode parar completamente as múltiplas maneiras pelas quais os países se entrelaçam. A pandemia e suas consequências econômicas incentivarão a busca de políticas para amortecer os choques externos que abalam periodicamente os países. Haverá mais protecionismo. Mas as vantagens de algumas facetas da globalização não desaparecerão.

O que essas quatro ideias têm em comum? O fato de serem pilares importantes da ordem mundial após a 2.ª Guerra. Embora os conceitos estejam danificados e desacreditados, é possível repará-los. Este será um desafio no próximos anos.